Quando me mudei do Brasil para a Europa, há dezoito anos, aconteceu algo que muito me surpreendeu: nas últimas semanas em São Paulo várias pessoas deram mostras de carinho e generosidade, disseram e fizeram coisas que não esperava. Na época achei que tivesse sido algo excepcional, mas depois, nas outras cinco vezes que mudei de país, percebi que a mesma coisa se repetia. Cada vez que o fim estava próximo algumas pessoas se revelavam e às vezes até agiam por impulso. As últimas semanas sempre foram as que abriam as portas do imponderável.
Pelo tipo de vida que levei eu não era o único que ia embora. Muitos dos amigos que encontrei pelo caminho também vinham de outro país ou se mudavam para outro lugar. E com eles ocorria o mesmo fenômeno. Em duas ocasiões vi até amores de última hora desabrocharem. Em ambos casos tratava-se de casais de diferentes nacionalidades. Quando a partida de um deles era iminente, um dos dois resolveu partir para o tudo ou nada, deu o passo, declarou-se e na undécima hora o relacionamento amoroso se cristalizou.
Apesar de que a iminência da separação costuma levar as pessoas a expressarem o que têm de melhor, nem sempre acontece assim. Nem todo mundo é do bem e alguns, poucos é verdade, aproveitam a hora final para dizer ou fazer coisas lamentáveis. Tive a imensa sorte de me deparar pouquíssimas vezes com essa situação.
Hoje é o último dia do governo Lula. Para o meu gosto foi um governo que durou demais. Não porque foram dois mandatos e oito anos representam mais de dez por cento da vida da maioria das pessoas. Durou demais porque se a nossa democracia fosse mais madura ele não teria resistido ao mar de lama que foi o escândalo do mensalão. Mas a maioria dos eleitores resolveu olhar para o outro lado, fingir de morto, acreditar que o presidente não sabia de nada. Não só não houve impeachment como Lula foi reeleito. Durou demais. Mas mesmo assim chegou o último dia.
O presidente poderia ter escolhido muitas maneiras de se despedir. Poderia até ter sido discreto e não ter feito nada no último dia do ano. Mas ele preferiu, no apagar das luzes do seu governo, negar a extradição do terrorista Cesare Battisti para a Itália. A data não é mero acaso. Ele sabia que essa decisão seria polêmica e poderia até ocasionar um impeachment. Ao invés de agir por convicção e arcar com os possíveis custos políticos da decisão, ele optou pela alternativa menos digna e deixou para assinar o papel no último dia do seu mandato.
O argumento usado pela presidência para garantir a impunidade do companheiro terrorista é que na Itália ele poderia ser vítima de perseguição política. Esse episódio exemplifica de forma lapidar o cinismo, o duplo critério e a má fé de muitos de nossos políticos de esquerda. O mesmo governo que negou o asilo a dois atletas cubanos durante o Pan no Rio, dois jovens que não tinham cometido crime nenhum, que simplesmente queriam fugir da enorme prisão que é o paraíso socialista dos brothers Castro, concede asilo a um criminoso julgado culpado de participação em quatro assassinatos! Alguém se preocupou em saber se os judocas cubanos mandados de volta para o seu país foram perseguidos politicamente? Provavelmente não, pois estavam preocupados com perseguições políticas num país democrático como a Itália. Um país onde nem sequer o homem mais poderoso, o primeiro ministro Silvio Berlusconi, consegue manipular a justiça, que ele frequentemente acusar de estar infiltrada por comunistas.
Os atletas cubanos form mandados de volta para não criar um conflito político com Cuba. Cuba, uma ditadura de partido único e cada vez mais miserável, um parceiro comercial de nenhuma importância econômica. No caso Battisti o governo não pôs reparo em dar uma bofetada diplomática na Itália, que não só é uma democracia, mas também um dos países membros do maior bloco econômico do mundo. O governo Lula não criticou nunca Cuba com a desculpa de não se intrometer em assuntos internos do país, mas não teve escrúpulos de dizer que a justiça italiana não funciona e que um cidadão daquele país pode ser vítima de perseguição política.
O argumento mais alucinante para defender Battisti é porque ele diz que é inocente! Quantos dos que defendem a tese da sua inocência conhecem as leis italianas segundo as quais ele foi condenado? Quantos leram os autos do processo, analisaram as provas, estudaram o veredicto? A maioria dos criminosos se declara inocente. É muito pouco para defender quem quer que seja. Se ele é inocente, que demonstre perante a justiça. E se não acredita na justiça do seu país, que apele para o Tribunal Europeu de Estrasburgo. Battisti, como qualquer outra pessoa, tem direito a um julgamento justo. Mas não tem nenhum direito a almejar a impunidade.
Para que tapar o sol com a peneira? A campanha a favor de Battisti só ocorreu porque ele é de esquerda e a solidariedade entre os companheiros de esquerda não conhece limites nem razão. Os atletas cubanos não ficaram no Brasil porque não eram de esquerda, queriam fugir do paraíso político criado pelo ícone da esquerda latino americana.
O político Lula nunca foi santo de minha devoção. Nunca votei nele e provavelmente nunca votaria. Considero seu governo medíocre, porque desperdiçou a melhor oportunidade que o Brasil teve durante o meu tempo de vida de fazer as reformas que poderiam realmente transformar o país para melhor. Algumas decisões que ele tomou me irritaram, outras me indignaram, houve as que considerei más, inúteis ou equivocadas. Mas com o ato de hoje o presidente conseguiu se superar, caíram todas as máscaras. Só ficou visível o que a esquerda latino americana tem de pior. Hoje senti uma enorme vergonha do governo do Brasil.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
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