terça-feira, 17 de maio de 2016

ASAMG - Impeachment e Democracia

Estive duas vezes no Brasil nos últimos seis meses. Em dezembro, em São Paulo, segui pela televisão a sessão do STF que fixou o rito para o impeachment. Achei que a maré tinha virado, o impeachment tinha perdido momentum e, mesmo que aos trancos e barrancos, a presidente conseguiria manter o seu mandato. Em março cheguei um dia antes das manifestações contra o governo e no domingo estive na Avenida Paulista. Minha conclusão foi diferente: com ou sem impeachment, o governo tinha acabado. Dilma não tinha a menor condição de continuar a governar, no máximo continuaria a dar expediente no Palácio do Planalto. Na semana passada a presidente caiu. Formalmente ela só foi afastada, ainda não perdeu o mandato, mas ninguém acredita que o julgamento final no senado lhe seja favorável.

Apesar de ser opositor do PT e considerar Dilma uma das piores presidentes da história do Brasil, ainda assim não dá muito para comemorar. O Brasil escolheu em plebiscito o sistema presidencialista. Neste não há lugar para afastar presidentes por sua incompetência ou impopularidade. Mesmo que haja indícios de que sua campanha foi financiada com dinheiro da corrupção, e a eventual confirmação dessa suspeita levasse à conclusão de que a reeleição não foi nem limpa nem justa, ainda assim Dilma teve mais votos que o seu opositor no segundo turno. Em 2016 sinto o mesmo desconforto que senti em 1992, que o impeachment tem um pouco (ou muito) de ressentimento da parte dos vencidos, é um terceiro turno que cheira a tapetão.

Que ninguém me entenda mal: se para mim o impeachment de Dilma é exatamente como o de Collor, também penso existir muito mais evidências de malfeitos, e muito maiores, no caso da primeira do que no do segundo. Se acatássemos os argumentos dos defensores da presidente Dilma seríamos levados à conclusão de que tampouco Collor deveria ter sido impedido. Não deixa de ser uma ironia de que os argumentos usados para defender Dilma inocentem Collor.

Se tudo isso é assim, então porque Dilma foi afastada? O rito do impeachment, previsto pela constituição e em lei específica e fixado em dezembro pelo STF, é extremamente restritivo, como deve ser. Trata-se de uma verdadeira corrida de obstáculos, com barreiras a serem transpostas a cada passo. Ainda assim os opositores conseguiram superar legalmente cada obstáculo e estão a apenas um passo de que ela perca definitivamente o seu mandato.

Não é difícil explicar como o país chegou onde chegou. Em primeiro lugar está a evolução das investigações da Lava Jato, com farta divulgação de informação pela imprensa, para nossa sorte livre. Não há dúvida de que é o maior escândalo de corrupção conhecido na história do Brasil, em gênero, número e grau, envolvendo políticos, partidos, empresas e empresários da maior relevância. Há mais de cinquenta acordos de delação premiada, que são antes de mais nada confissões dos próprios criminosos dos crimes que cometeram. Acordos de devolução de dinheiro roubado e multas que ultrapassam a casa do bilhão de reais. Não dá para varrer uma coisa dessas para debaixo do tapete, dizer que não sabia de nada ou fingir que as doações de empresas aos partidos políticos envolvidos, feitas com ar de legalidade, sejam totalmente independentes dos benefícios que essas mesmas empresas receberam do esquema corrupto. O grau de decepção e indignação com o PT é maiúsculo, inclusive por parte de muitos dos seus próprios militantes.

Infelizmente, no entanto, a democracia brasileira não é suficientemente madura para que corrupção derrube governos ou governantes. A triste realidade é que o mensalão não fez o menor dano a Lula, que se reelegeu em 2006 e elegeu Dilma em 2010. Existem muito eleitores dispostos a olhar para o outro lado, desde que o país vá bem. A diferença agora é que o Brasil está passando por sua pior recessão em ao menos 80 anos. A incompetência do governo Dilma começa a ser sentida na vida e no bolso de milhões de brasileiros. Não é à toa que a popularidade da presidente esteja no chão e as pesquisas indiquem que a maioria dos eleitores é favorável ao seu afastamento.

Em terceiro lugar há muitas evidências de possíveis crimes que poderiam levar à perda do mandato, dentre os quais o mais grave teria sido o financiamento ilegal da campanha de 2014. Mas há também suspeitas de obstrução da justiça por parte da presidente, há as pedaladas fiscais, o desrespeito à lei de responsabilidade fiscal. Existe no ar o sentimento de que o andamento normal da justiça beneficiaria indevidamente a presidente, pois até ser condenada, se fosse, seu mandato já teria acabado e a punição teria pouco efeito prático.

Em quarto lugar, e não menos importante, Dilma é de uma incompetência política que beira o inacreditável. Todo mundo vocifera, com razão, contra o nefasto Eduardo Cunha, mas poucos se lembram de que ele só chegou à presidência da Câmara porque ela tentou eleger sozinha o seu candidato, foi ao tudo ou nada e perdeu sua aposta. Foi seu mais caro erro político. Nas duas votações-chave, tanto na câmara quanto no senado, mais de dois terços dos congressistas votaram contra a presidente. É realmente difícil um presidente ter tanta gente contra si, mas ela conseguiu.

Last but not least, para que manter Dilma na presidência? O que ela poderia fazer de bom para o país nos próximos 30 meses? Nem mesmos seus maiores defensores conseguiriam encontrar uma resposta ao mesmo tempo crível e consistente para essa pergunta. Ao contrário, a maioria, quando não há coxinhas por perto, reclama do quanto Dilma é ruim, incompetente. Na prática sua permanencia na presidencia da República seria ruim para ela, para o seu partido e para o Brasil e todo mundo sabe disso, mesmo que alguns não dêm o braço a torcer.

Foi principalmente devido à última razão que fui às ruas quando tive a oportunidade e gritei “fora Dilma”. Preferia que ela tivesse renunciado; achava que a oposição tinha que ter sido muito mais dura pedindo a sua renúncia, sem dar a menor trégua. O impeachment é só a segunda melhor opção, desde que continue respeitando a legalidade. Não há nenhum golpe em curso no país, mas não é bom para a democracia que um instrumento pensado para situações mais graves de crime de responsabilidade seja banalizado e utilizado como coringa para o país desfazer-se de presidentes desastrosos.

Qual a solução? Para o processo em curso não há nada a fazer, mas pensando no futuro o Congresso deveria rever e atualizar a lei de impeachment, talvez limitando o seu escopo. O país também poderia repensar a opção parlamentarista. Em tese sou favorável, mas não a curto prazo. Muito mais urgente é fazer uma reforma política que limite o número de partidos no país em função de barreira de votos. Criar novos partidos acaba sendo um bom negócio econômico que em nada fortalece a democracia. É preciso trazer essa discussão urgentemente para a genda nacional. E por fim eu estudaria a adoção de um instrumento previsto numa constituição que foi escrita para sustentar um regime autoritário, mas que tem um mecanismo que pode ser surpreendentemente útil e democrático. Estou me referindo à constituição da Venezuela e à possibilidade de se convocar um referendum para destituir, por maioria absoluta de votos, o mandato de um presidente da República. Se esta opção existisse no nosso marco legal tanto Collor como Dilma poderiam ter sido mandados para casa sem que pairassem dúvidas sobre a legitimidade da decisão. Seus vices só teriam assumido interinamente e novas eleições teriam sido convocadas. Seria uma alternativa não só mais democrática, como muito mais elegante.