A
primeira vez que vim morar em Barcelona foi em 1994. Desde então mudei quatro
vezes de país por razões profissionais e, a cada vez, voltei para cá. Passei
treze dos últimos 23 anos na Catalunha e considero que Barcelona é a minha casa
na Europa. A Catalunha em geral e Barcelona em particular são lugares
privilegiados do planeta: em termos humanos, culturais, econômicos, climáticos
etc. Se não fosse o projeto de ir morar em Cascais depois de me aposentar,
diria que é onde quero passar o resto da minha vida.
A
Catalunha de hoje, no entanto, não é mais a mesma de 1994. Naquela época, em
que o terrorismo basco estava ativo e matava, os catalães podiam se orgulhar do
seu nacionalismo democrático. Apesar dos tópicos anedóticos, respirava-se aqui
ares cosmopolitas, de abertura ao mundo e de acolhimento aos que vinham de
fora. A independência era um ideal sempre presente no horizonte, mas ninguém
estava disposto a fazer bobagem ou a hipotecar o futuro em nome desse ideal.
Quanto
mudou essa situação, em especial nos últimos cinco anos! Desde que o antigo
partido nacionalista catalão voltou ao governo da Generalitat, depois de um
interregno de sete anos de governo socialista, o discurso nacionalista foi
ganhando progressivamente centralidade. Não é exatamente uma surpresa: por um
lado a Espanha passou por uma severa crise econômica, que levou o nível de
desemprego ao patamar de 25%; por outro, o novo presidente da Generalitat
não teve nem os recursos nem a capacidade para fazer um bom governo. Diante dos
pobres resultados que podia apresentar, o apelo ao populismo era a saída mais
fácil.
A aposta
independentista ganhou peso. Artur Mas, o então presidente, convocou duas
eleições antecipadas, na crença de que aumentaria seu capital político. Em
ambas perdeu votos e deputados no parlamento regional. Nem por isso diminuiu o
desafio ao estado espanhol, à constituição e inclusive às decisões dos tribunais.
Não há dúvida de que conseguiu transformar o chamado “direito de decidir” na
questão central da política catalã. Diante da impossibilidade de fazer o
plebiscito independentista, as últimas eleições regionais, em 2015, foram
chamadas de plebiscitárias: quem estivesse a favor da independência deveria
votar nos partidos que a apoiavam. 47,8% dos eleitores o fizeram. Políticos
honestos reconheceriam a derrota da sua aposta, ainda que por margem muito
pequena. Mas como eles conseguiram eleger uma maioria de deputados, apesar da
minoria de votos, se declararam vencedores do “plebiscito” e desde então não se
cansam de dizer que a maioria dos catalães quer se separar da Espanha.
Não é preciso
dizer que todo o debate está impregnado de emotividade, supostas
injustiças cometidas pelo estado espanhol e a promessa de uma vida muito melhor
depois da separação da Espanha, fonte de todos os males que afligem a
Catalunha. A visão independentista é criar uma Dinamarca no Mediterrâneo.
Independente, a Catalunha seria tão rica, tão próspera, tão democrática, tão
cosmopolita, tão moderna e tão feliz quanto o reino escandinavo, mas com a
vantagem inigualável de estar à beira do Mediterrâneo. Qualquer menção ao custo
da independência é logo desqualificada, como se não houvesse risco algum ou a
menor possibilidade de que as coisas saíssem mal. Muito a contra-gosto alguns
políticos se veem obrigados a admitir que talvez a Catalunha independente
estivesse fora da União europeia, para logo em seguida acrescentar que esta seria
uma eventualidade temporária, pois afinal a UE não se arriscaria a perder sete
milhões de cidadãos que querem fazer parte dela.
Nos
últimos dias os jornais noticiam com cada vez mais intensidade que o atual
governo regional já teria preparada uma lei de desconexão do estado espanhol,
pronta para ser votada no parlamento. A comissão de garantias do próprio
parlamento se manifestou afirmando que tal iniciativa seria inconstitucional,
mas como seu parecer não é vinculante, os políticos resolveram ignorá-lo. O
objetivo é decretar unilateralmente a desconexão, para em seguida poder
realizar um plebiscito vinculante, que os nacionalistas estão convencidos que
ganharão. A partir desse momento não haveria volta atrás, o país passaria a ser
uma república independente.
Tal ação
estava prevista para setembro, mas como as pesquisas de opinião mostram perda
de apoio à causa independentista, o estado espanhol está processando os políticos
que desobedeceram decisões do Tribunal Constitucional e cada vez há mais
indícios de corrupção estrutural envolvendo o partido no governo (em épocas
passadas, é verdade), começa a bater o medo no setor independentista de que a
janela de oportunidade esteja se fechando e que portanto há que atuar já. Por
maluco e inacreditável que possa parecer, não dá para descartar que esses mesmos
políticos ponham o seu plano em ação num futuro muito próximo.
Seria uma
enorme pena. Uma independência unilateral, mesmo que vitoriosa, mandaria a
Catalunha imediatamente para fora da União Europeia. Como o estado espanhol tem
direito de veto, seria mais do que duvidoso que a República Catalana fosse
admitida ao clube em menos de uma geração. O risco de desastre econômico é
igualmente enorme, a começar pelo fato de que o governo do novo país teria que
usar uma moeda emprestada, o Euro, a qual não poderia emitir para se financiar.
E mesmo que o estado espanhol não fizesse nada para parar essa loucura, que é
igualmente uma hipótese muito pouco provável, não há como evitar a reação
negativa de todos aqueles dentro da Catalunha que são contra a independência,
além dos cidadãos do resto da Espanha. Desobediência, boicote e sabotagem ao novo
estado estariam na ordem do dia.