Menos de um mês depois de publicar os resultados provisórios do censo 2010, no final de Novembro passado o IBGE publicou os dados definitivos. Entre um resultado e outro havia uma diferença de cinco milhões de habitantes. Essas pessoas terão sido encontradas no espaço de poucas semanas. Hum. Esta foi a primeira vez que acompanhei a publicação dos dados, portanto não tenho a menor idéia se é normal haver uma diferença tão grande entre o número preliminar e o final. No entanto, como sou treinado para desconfiar de estatísticas, ainda mais quando elas beneficiam quem as faz, essa mudança súbita me cheirou mal. Ainda mais levando em conta que 32,7% da diferença se concentrou nas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio, que abrigam 20,2% da população. É normal errar mais nas duas maiores metrópoles do país? Eu, se quisesse fazer um "ajuste" no número, escolheria fazê-lo onde fosse mais difícil comprovar, ou seja, onde houvesse maior população. Sei lá, haverá algo de podre no Reino da Dinamarca?
Os primeiros números deixavam o IBGE de tanga, pois eram imensamente distantes das suas projeções mais recentes. A última PNAD, publicada em Setembro de 2009, projetava uma população naquele ano de 191,8 milhões de almas, 1,1 milhão a mais do que o resultado final do censo de 2010. Considerando que entre 2009 e 2010 a população deve ter crescido entre 1,0 e 1,5 milhão, o censo já mostrou uma diferença notável com relação a um instrumento (a PNAD) que deveria ser muito mais fiável. Mas havia mais gente interessada em encontrar uma população maior no Brasil, pois se fosse confirmado o dado de 185,7 milhões muitas teses caras aos atuais governantes iriam por água abaixo. Para começo de conversa, a tolice de que a atual previdência social é sustentável a longo prazo. Por isso minhas dúvidas quanto à correção feita.
De qualquer forma, seja qual for o número correto, as conclusões mantém-se as mesmas, só varia a sua intensidade. A transição demográfica está ocorrendo de forma acelerada; a população está deixando de crescer; se não houver um notável fluxo migratório nas próximas décadas, o Brasil deixará de crescer entre 2020 e 2030 (mais próximo de 2020 que de 2030); é questionável se algum dia chegaremos a ter 210 milhões de habitantes; o envelhecimento populacional está se acelerando; as maiores metrópoles do país estão muito perto de pararem de crescer; e a população rural é cada vez mais insignificante com relação ao total (menos de 16%).
Vale a pena destacar este último fato. Em 1940 12,8 milhões de pessoas viviam nas cidades brasileiras - em setenta anos o número mais que decuplicou, sendo hoje 160,8 milhões. No mesmo ano, 1940, quase 70% dos brasileiros viviam na zona rural. De lá para cá esta proporção tem caído sistematicamente, até os 15,7% de 2010. Mais significativo, o número absoluto de pessoas que vivem no campo é decrescente desde 1970: passamos de 41 milhões em 1970 a menos de 30 em 2010. Em números absolutos a atual população rural é semelhante à de 1940. Isto quer dizer que do ponto de vista da urbanização, a transição demográfica brasileira está na reta final.
Estes dados demográfico têm uma importante repercussão sobre o que é e o que pode vir a ser a sociedade brasileira. A primeira delas, emocionalmente difícil para a esquerda tradicional, é a de que a chamada "questão agrária" e o remédio clássico para resolvê-la, a reforma agrária, perderam sua relevância política e social - o problema do Brasil contemporâneo é urbano e não rural. Tanto mais que a agricultura e o agro business se desenvolveram enormemente e do ponto de vista produtivo uma eventual reforma agrária não só não aportaria valor, como provavelmente seria contra-produtiva.
Por outro lado, a questão urbana é de máxima relevância: nossas cidades explodiram, principalmente as duas maiores áreas metropolitanas, e a infra-estrutura não acompanhou a demanda. O fim do processo de urbanização (população rural que se muda para as cidades) e a acentuada queda no crescimento demográfico, que provavelmente ocorrerá nas próximas duas décadas, vão trazer um respiro para as nossas cidades: pela primeira vez em mais de um século há a possibilidade dos investimentos em infra-estrutura irem mais rápido que a demanda, o que resultaria numa melhor qualidade de vida, em muitos dos municípios brasileiros.
Trata-se, sem dúvida, de uma boa notícia. No entanto deixar à mercê do acaso o desenvolvimento urbano não é nem inteligente nem desejável. Este tem um impacto direto sobre a economia, a política, o meio-ambiente e até a segurança nacional. Por exemplo, não é a mesma coisa a Amazônia mais povoada ou menos povoada; faz toda diferença se a população se concentrar em poucos centros urbanos ou se espalhar em muitas cidades de menor dimensão; ter mais ou menos cidades próximas à fronteira também faz diferença, assim como para a floresta tropical os eixos de povoamento e as atividades econômicas são decisivos.
Está mais do que na hora de começarmos a nos perguntar que tipo de país queremos ser quando crescermos. Querendo ou não, nossa urbanização até agora foi centralizadora e concentrada em duas áreas metropolitanas: São Paulo e Rio de Janeiro. Em nível regional outras cidades também explodiram, como Belo Horizonte, Salvador ou Recife. Isso é o que queremos para o futuro? Eu não me cansarei de repetir que São Paulo e Rio deveriam diminuir de tamanho, até porque se tornou caro demais proporcionar os serviços que cidades tão grandes necessitam - há deseconomias de escala. Uma estratégia urbana que tivesse como objetivo explícito a redução da população das duas maiores metrópoles nacionais seria algo inédito.
No entanto desanima pensar que nenhum governo, ou partido político, desenvolveu estratégia a respeito. Está mais do que na hora de começarmos a pensar numa. Criar ministérios como o das Cidades pode ser perfeitamente inútil se não estiver acompanhado de conteúdo. Só serve para assegurar emprego para os companheiros e aumentar o gasto público. Não resolve nada. E se os governos até hoje não se preocuparam com o tema, não há porque nós, cidadãos, ficarmos à sua espera. Nós mesmos podemos começar a pensar e opinar sobre qual deveria ser a estratégia e a política urbana para o Brasil do século XXI. Em algum momento este debate tem que ser iniciado para dar um pouco de sentido às coisas que fazemos. Para planejar o nosso futuro precisaremos tanto de bons censos como de uma grande dose de bom senso. Fingir de morto é a pior das escolhas.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
ASAMG - Melhor Freud Não Explicar
A primeira vez que li que seria criado um documento nacional de identidade no Brasil, o tal do RIC, uma frase do cartão me chamou a atenção: "Estado de Utopia". Imediatamente pensei que aquilo devia ser uma bobagem qualquer, escrita à esmo só para exemplificar o formato do novo documento. Tempos depois voltei a vê-lo mais duas ou três vezes em jornais na internet, e comecei a me preocupar: será que algum iluminado estava reivindicando que o Brasil passasse a ser denominado "Estado de Utopia"? Essas coisas são um perigo, pois quanto mais babaca a idéia, maior a probabilidade de encontrar um padrinho (ou madrinha, não quero ser acusado de machismo).
"Não", pensei, "não pode ser". "Isso seria incrível". Mau. Quando no Brasil essas duas frases são ditas uma depois da outra, sua tradução costuma ser "sim, está acontecendo; você não acredita, mas é real". Não seria a primeira vez que uma estupidez ganha status oficial. Nossa constituição não limita os juros a 12% ao ano? Não obriga o professor a fazer chamada? Quando um amigo me contou sobre o artigo da chamada, achei realmente que ele estivesse de sacanagem. "Não pode ser, não acredito" foi o que respondi. Ele me disse em que artigo estava esta pérola. E está mesmo. Um frio percorreu a minha espinha. A história da utopia podia ser a sério. Tentei imaginar quais seriam os argumentos para defender tal idéia, mas minha imaginação não chegava para tanto.
Hoje voltei a ver o modelo do novo RIC e o examinei cuidadosamente. O cabeçalho é: "República Federativa do Brasil, Ministério da Justiça, Registro de Identidade Civil, Estado de Utopia". Então entendi que Estado, no caso, se referia à unidade da federação. Para não mencionar nenhum Estado específico, quem bolou o modelo deixou-se levar por uma inspiração poética e escreveu "Estado de Utopia". Claro que Freud explicaria. Poderia estar escrito Estado de Nheco-nheco; Estado do Fim do Mundo; até Estado de Espírito. Mas utopia é mais significativo. Seu autor deve ter pensado que os governos companheiros estão trazendo a felicidade das utopias para o reino dos homens (desculpa, República). Ai Jesus, esse é o problema. Alguém pode achar que no fundo trata-se de uma boa idéia.
Quem escreve na nota uma jequice do tipo "Deus seja louvado", misturando duas coisas que não têm rigorosamente nada a ver uma com a outra, fé e dinheiro, pode também por no documento de identidade "Estado de Utopia". Onde o Febeapá campeia há tanto tempo, desde muito antes de Sérgio Porto criar a expressão, vale tudo, até beijo na boca. Seria a República republicana como nunca antes na história desse país! Melhor Freud não explicar o que se passou no inconsciente de quem cunhou tal frase, antes que uma personagem como a segunda Marquesa de Rabicó resolva levá-la a sério. Da minha parte eu só toparia se o que estivesse escrito fosse: "Bananão, Estado de Utopia".
Enquanto a utopia não chega, cada vez mais me convenço que Cazuza foi um visionário genial ao compor "O tempo não pára". Ele não nos contou o que estava acontecendo, antecipou o futuro. Quem acha que era a música da era Collor talvez se surpreenda como ela se ajusta à era Lula. Quantas vezes o ex-presidente usou a palavra republicano da maneira tonta que o petismo botou em moda? Alguém devia perguntar a ele se é republicano usar os bens públicos para fins privados, por exemplo passando férias familiares na praia numa base do exército e por conta do contribuinte. É republicano dar passaporte diplomático para os filhos no final de seu governo? Como era mesmo que cantava Cazuza? "Sua piscina está cheia de ratos, suas idéias não correspondem aos fatos..."
E no meio disso tudo, a primeira notícia econômica do governo Dilma surpreendeu: a presidente quer privatizar a construção dos novos terminais nos aeroportos brasileiros, além de abrir o capital da Infraero. Não nos iludamos, isso é só o reconhecimento de que o governo é incapaz de construir os novos terminais dentro do prazo necessário, ou seja, para a Copa. Ninguém parece estar incomodado com os anos perdidos durante o governo anterior, quando tal decisão podia e deveria ter sido tomada. Os brasileiros que se danem e aguentem transitar por aeroportos terceiro mundistas e abarrotados. Mas agora que eles já ganharam as eleições e não precisam mais acusar os adversários de privataria, acharam melhor tomar uma decisão sensata. Antes tarde do que nunca, como diziam nos tempos dos meus avós. E Deus, além de ser louvado, permita que a nova presidente se deixe iluminar e aja mais vezes com a mesma sensatez. Pelo menos ela merece o crédito de não ter começado fazendo besteira. Será que ela veio para matar pai e mãe? Acho que nem Freud se atreveria a decifrar esse mistério. Qui vivra verra!
"Não", pensei, "não pode ser". "Isso seria incrível". Mau. Quando no Brasil essas duas frases são ditas uma depois da outra, sua tradução costuma ser "sim, está acontecendo; você não acredita, mas é real". Não seria a primeira vez que uma estupidez ganha status oficial. Nossa constituição não limita os juros a 12% ao ano? Não obriga o professor a fazer chamada? Quando um amigo me contou sobre o artigo da chamada, achei realmente que ele estivesse de sacanagem. "Não pode ser, não acredito" foi o que respondi. Ele me disse em que artigo estava esta pérola. E está mesmo. Um frio percorreu a minha espinha. A história da utopia podia ser a sério. Tentei imaginar quais seriam os argumentos para defender tal idéia, mas minha imaginação não chegava para tanto.
Hoje voltei a ver o modelo do novo RIC e o examinei cuidadosamente. O cabeçalho é: "República Federativa do Brasil, Ministério da Justiça, Registro de Identidade Civil, Estado de Utopia". Então entendi que Estado, no caso, se referia à unidade da federação. Para não mencionar nenhum Estado específico, quem bolou o modelo deixou-se levar por uma inspiração poética e escreveu "Estado de Utopia". Claro que Freud explicaria. Poderia estar escrito Estado de Nheco-nheco; Estado do Fim do Mundo; até Estado de Espírito. Mas utopia é mais significativo. Seu autor deve ter pensado que os governos companheiros estão trazendo a felicidade das utopias para o reino dos homens (desculpa, República). Ai Jesus, esse é o problema. Alguém pode achar que no fundo trata-se de uma boa idéia.
Quem escreve na nota uma jequice do tipo "Deus seja louvado", misturando duas coisas que não têm rigorosamente nada a ver uma com a outra, fé e dinheiro, pode também por no documento de identidade "Estado de Utopia". Onde o Febeapá campeia há tanto tempo, desde muito antes de Sérgio Porto criar a expressão, vale tudo, até beijo na boca. Seria a República republicana como nunca antes na história desse país! Melhor Freud não explicar o que se passou no inconsciente de quem cunhou tal frase, antes que uma personagem como a segunda Marquesa de Rabicó resolva levá-la a sério. Da minha parte eu só toparia se o que estivesse escrito fosse: "Bananão, Estado de Utopia".
Enquanto a utopia não chega, cada vez mais me convenço que Cazuza foi um visionário genial ao compor "O tempo não pára". Ele não nos contou o que estava acontecendo, antecipou o futuro. Quem acha que era a música da era Collor talvez se surpreenda como ela se ajusta à era Lula. Quantas vezes o ex-presidente usou a palavra republicano da maneira tonta que o petismo botou em moda? Alguém devia perguntar a ele se é republicano usar os bens públicos para fins privados, por exemplo passando férias familiares na praia numa base do exército e por conta do contribuinte. É republicano dar passaporte diplomático para os filhos no final de seu governo? Como era mesmo que cantava Cazuza? "Sua piscina está cheia de ratos, suas idéias não correspondem aos fatos..."
E no meio disso tudo, a primeira notícia econômica do governo Dilma surpreendeu: a presidente quer privatizar a construção dos novos terminais nos aeroportos brasileiros, além de abrir o capital da Infraero. Não nos iludamos, isso é só o reconhecimento de que o governo é incapaz de construir os novos terminais dentro do prazo necessário, ou seja, para a Copa. Ninguém parece estar incomodado com os anos perdidos durante o governo anterior, quando tal decisão podia e deveria ter sido tomada. Os brasileiros que se danem e aguentem transitar por aeroportos terceiro mundistas e abarrotados. Mas agora que eles já ganharam as eleições e não precisam mais acusar os adversários de privataria, acharam melhor tomar uma decisão sensata. Antes tarde do que nunca, como diziam nos tempos dos meus avós. E Deus, além de ser louvado, permita que a nova presidente se deixe iluminar e aja mais vezes com a mesma sensatez. Pelo menos ela merece o crédito de não ter começado fazendo besteira. Será que ela veio para matar pai e mãe? Acho que nem Freud se atreveria a decifrar esse mistério. Qui vivra verra!
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