segunda-feira, 31 de outubro de 2016

ASAMG - PEC 241

A tramitação da PEC 241 pelo Congresso Nacional está gerando surpresa e indignação. A maior surpresa é ver como a base do novo presidente é coesa e disciplinada. Não houve susto em nenhuma das duas votações na Câmara, sendo aprovada com folgada margem, apesar da necessidade de dois terços dos votos. Dizem que a situação mudará no Senado, mas mesmo assim, nada mais distante do esfarelamento da sustentação parlamentar no governo Dilma. Nota-se a diferença entre o político profissional e a política incompetente.

A indignação vem dos partidos e militantes de esquerda, que não se cansam de entoar a ladainha que se está sacrificando a educação e a saúde no altar do neoliberalismo. Francamente, nem parece que eram eles que governavam até muito recentemente e que a situação de pindaíba generalizada que aflige os três níveis de governo no país foi criada pela irresponsabilidade fiscal da sua presidente. Além de dizerem que se está tirando dinheiro da educação e saúde, o que não é certo, não são capazes de apresentar nenhuma alternativa que não seja a de tributar grandes fortunas e deixar de pagar os juros da dívida interna. Fala sério.

Vamos aos fatos: o mais relevante é que o governo Dilma jogou o país na pior recessão dos últimos oitenta anos. Isso dito assim parece só uma frase a mais de opositor. Infelizmente, esse fato sucinto tem tradução dramática para a realidade. A primeira delas é a de que, apesar de haver menos instabilidade e mais calma, tudo indica que ainda não chegamos ao fundo do poço. Há razões para pensar que a economia continuou a se contrair no último trimestre, e não se sabe quando deixará de fazê-lo. A arrecadação fiscal também continua em queda e é de se esperar que mais estados e municípios tenham dificuldades de pagar suas contas – é, o número de funcionários públicos com salários atrasados provavelmente vai aumentar, antes da situação deixar de piorar. O déficit público primário, antes do pagamento dos juros, ficará em astronômicos 170 bilhões de reais. A previsão para o ano que vem, que começa a parecer otimista, é de mais 140 bilhões. O desemprego tampouco deve deixar de aumentar no curto prazo.

Diante desse quadro, como dá para dizer com o mínimo de honestidade intelectual que o governo está tirando dinheiro da educação e saúde? Que dinheiro, se em dois anos o Estado vai gastar 300 bilhões a mais do que arrecada?  Que dinheiro, se em 2014/2015 o déficit primário foi de 150 bilhões de reais? Que dinheiro, se entre 2008 e 2015 as despesas da União subiram 51%, enquanto a receita só cresceu 14,5%? Que dinheiro, se com a limitação do gasto da União proposto pela PEC o equilíbrio entre receitas e despesas só será atingido em 2022, último ano de mandato do próximo presidente? Que dinheiro, se de acordo com essa projeção, nesse mesmo ano a dívida pública terá atingido 86% do PIB, que já é um valor elevado para país rico, e desastroso para país de renda média? Tudo bem que ser oposição é fácil, dá para protestar contra qualquer coisa, mas é preciso um mínimo de seriedade. A proposta é não fazer nada e o dinheiro que faltar deve ser coberto por imposto sobre a fortuna? Quem propõe isso não sabe nem sequer calcular um imposto, pois se soubesse não abriria a boca para dizer tamanha besteira.

A triste realidade é que a situação é grave e não são muitas as alternativas fora do mundo do faz-de-conta onde parte dos nossos esquerdistas vivem. Elas se resumem a quatro alternativas:

- Não fazer nada e deixar o país ir de cara contra a parede, para enfrentar uma crise de proporções gregas, e isso num horizonte de dez a quinze anos.

- Cortar gastos para diminuir o déficit, o que agravaria a crise atual.

- Aumentar impostos para diminuir o déficit, o que também agravaria a crise atual. Ambas medidas são recessivas, com a desvantagem de não darem nenhuma perspectiva de longo prazo para a evolução da dívida pública.

- Financiar o déficit público com emissão de moeda, deixando a inflação explodir, na vã esperança de que ao menos dê para salvar o crescimento econômico. Quero ser otimista e pensar que as experiências dos anos oitenta e noventa nos tenham ensinado que isso não é realmente alternativa, mas como burrice é um mal que não tem cura, sempre é capaz de ter alguém propondo este tipo de sandice.


Não conheço nenhuma outra alternativa para o país. Se alguém tem ideia melhor, que dê o passo à frente e a proponha. A PEC 241 não é uma Brastemp e falta ver se vai funcionar, mas ao menos tem a vantagem de não exacerbar a recessão a curto prazo e dar uma perspectiva de estabilidade a longo prazo. Quanto aos cortes na saúde e educação, bem, há sim um potencial corte virtual de dinheiro que não existe. Faz alguma diferença?

terça-feira, 11 de outubro de 2016

ASAMG - A Paz na Colômbia

Nas duas útlimas semanas a Colômbia tem aparecido com destaque na imprensa internacional. Depois de quatro anos de negociações, o governo de Juan Manuel Santos conseguiu chegar a um acordo de paz com o grupo guerrilheiro FARC, que poria fim a um conflito armado inciado em 1964 e que causou entre 220.000 e 260.000 mortos e talvez sete milhões de deslocados pela violência. Foi uma montanha russa: na segunda 26/09 o acordo foi assinado em cerimônia pública em Cartagena, com a presença de dez chefes de estado; no domingo 02/10 uma mínima maioria de eleitores (50,21%) votou não ao acordo; na sexta-feira 07/10 Santos ganhou o prêmio Nobel da paz, no que é visto como um estímulo internacional para que governo e guerrilha não deixem de continuar negociando.

Li todos os artigos que caíram nas minhas mãos sobre o assunto. Acompanho a política colombiana há mais de vinte anos. Para o meu pesar, só estive no país uma vez, ainda nos anos negros em que narcotraficantes, guerrilheiros e paramilitares mandavam e desmandavam. Apesar das enormes dificuldades vividas naquela época, fiquei encantado com o que vi e com as pessoas que conheci. É o país latino-americano que mais admiro e o de que mais gosto. Por isso torcia para que ganhasse o “sim” e fiquei chocado com a vitória do “não”.

Os artigos que li abundavam sobre a rivalidade entre o presidente e o seu predecessor, Álvaro Uribe, de quem foi minitro da defesa, ou analisavam os prós e contras de um acordo de paz que muitos consideram demasiadamente favorável aos guerrilheiros, que podem escapar impunes dos crimes cometidos ao longo dos últimos 52 anos, e ainda por cima teriam dez cadeiras asseguradas no congresso nacional durante dez anos. Uns poucos mencionavam o papel de Cuba ou da Venezuela chavista no apoio que deram às FARC. Pouquíssimos, no entanto, voltavam suficientemente atrás no tempo, até o desastroso governo de Andrés Pastrana e seu mal-sucedido processo de paz. Não dá para entender o que acontece hoje sem lembrar o caminho percorrido nos últimos vinte anos.

Pastrana foi presidente entre 1998 e 2002. Tomou a iniciativa de iniciar uma negociação com as FARC, os Diálogos de Cuagán. Aos guerrilheiros foi concedido um território de 42.000 km quadrados, equivalente à metade do território português, sobre o qual na prática tinham soberania. Não foi exigido um alto ao fogo preliminar como contrapartida. As negociações se arrastaram ao longo de três anos, sem chegar a lugar nenhum. Posteriormente ficou claro que a guerrilha não tinha nenhuma intenção de deixar as armas, simplesmente se aproveitou da boa fé de um governo bem-intencionado, mas ingênuo, para se rearmar e fortaceler. Quando as negociações foram interrompidas, ao final do mandato presidencial, o país estava a ponto de se tornar um estado falido.

Quando Álvaro Uribe foi eleito a situação na Colômbia era dramática. Além das FARC havia a guerrilha do ELN, os grupos paramilitares e os traficantes de droga, que competiam todos com o Estado pelo controle do país. Uribe adotou uma estratégia de enfrentamento militar contra esses grupos. Foi apoiado pelos Estados Unidos, o que levou ao afastamento de muitos presidentes da América do Sul, principalmente o da Venezuela, o malfadado Hugo Chávez. Os dois se tornariam inimigos acérrimos. Havia na época enorme ceticismo sobre a possibilidade real de se vencer a guerrilha com a força das armas.

Uribe conseguiu mudar a constituição colombiana e concorrer a um segundo mandato. Foi quando Juan Manuel Santos tornou-se seu minitro da defesa e depois candidato a sucedê-lo. Demorou, mas a estratégia de Uribe trouxe resultados. Em 2008 a guerrilha sofreu duros golpes, desde a morte do seu líder histórico, Manuel Mirulanda (oficialmente morreu de infarte, mas não se descarta que tenha morrido em ação), à morte de Iván Ríos ou Raul Reyes, o último na controvertida ação em solo equatoriano. Todos eram membros do comando máximo das FARC. Houve também a deserção de Nelly Ávila, substituta de Iván Ríos, e o resgate cinematográfico da ex-candidata presidencial Ingrid Betancourt e mais 14 reféns.

Uribe chegou a um acordo de desmobilização com os paramilitares que gerou muita controvérsia. Ofereceu um plano de desmobilização aos guerrilheiros que abandonassem as armas, com penas de prisão limitadas a oito anos. Por outro lado, do ponto de vista econômico apareciam os resultados da sua gestão e a Colômbia entrava numa trajetória de crescimento que contribuía para uma melhora geral das condições de vida dos seus cidadãos. Uribe chegou a ter 91% de aprovação popular, um record na América Latina. Ao sair do governo as FARC tinham perdido força, território, capacidade de ação e qualquer perspectiva de ganhar a guerra civil. Estavam reduzidos a um grupo criminoso, financiado pelo narcotráfico, mas ainda assim apoiado por Cuba, Venezuela e Foro de São Paulo.

A mudança de estratégia veio com o primeiro governo de Juan Manuel Santos. Em algum momento o ex-ministro percebeu que apesar do Estado ter conseguido acurralar os guerrilheiros, sua aliança com o narcotráfico, um negócio multi-bilionário, os tornava na prática invencíveis. Diante da perspectiva de continuar empregando recursos desproporcionais para eliminar um grupo guerrilheiro, sem ter a certeza da vitória, e a alternativa de encerrar o conflito através da negociação, escolheu o segundo caminho. Três dias depois de assumir o governo convidou o até então mega inimigo, Hugo Chávez, para um encontro em solo colombiano. Então teria informado o presidente venezuelano de que iniciaria contatos com a guerrilha para negociar a paz. Como primeiro resultado ganhou um poderoso inimigo interno: Uribe nunca o perdoou por esse passo.

Olhando para trás, alguns fatos saltam aos olhos: as FARC nunca tiveram a paz como objetivo. Nas primeiras décadas queriam derrubar o estado colombiano e construir a sua versão de inferno socialista. À medida que se associaram ao narcotráfico, é duvidoso que tenham um real interesse em abandonar um negócio extremamente lucrativo. Não dá para vê-los pintados nas cores idílicas do idealismo. São, pura e simplesmente, criminosos. Se chegaram a negociar um acordo de paz durante quatro anos só o fizeram porque o Estado os acurralou através da força militar. O governo Uribe foi imprescindível nesse processo e isso não deve ser esquecido.

Mas Santos também tem razão. Terminar o conflito de forma negociada é muito melhor do que prosseguir com a guerra. O acordo de paz é realmente muito leniente com os guerrilheiros, mas ao menos tem uma grande vantagem: sabe-se quando o conflito vai acabar, como e a quê preço, ainda que na sua implementação possa haver surpresas desagradáveis. O presidente muitas vezes argumentou que este era o acordo possível, que não dava para negociar algo melhor. É muito provável que tivesse razão e por isso torci pela vitória do “sim”. Mas venceu o “não”.


A vitória do “não” obriga a fazer o que antes era visto como impossível. Voltar para a mesa de negociações e chegar a um novo acordo, que seja mais palatável aos eleitores colombianos. É um tremendo anti-clímax. É também uma aposta muito alta. Pode tanto dar em nada, como pode resultar num acordo mais justo. Nos negócios às vezes é possível negociar acordos impossíveis. Num conflito armado não tenho ideia. Infelizmente, o fato de que a alternativa seja a volta às hostilidades, com suas mortes e sofrimento, tem pouco peso para o resultado final.