domingo, 15 de outubro de 2017

ASAMG - O Trem Que Partiu Vazio

Muita coisa aconteceu na Espanha desde o meu post anterior, mas nada mudou na Catalunha. No dia 1 de outubro foi realizado o referendum ilegal. O governo central fez o que pôde para impedi-lo, até mandou tropa de choque da polícia espanhola para fechar colégios eleitorais, mas não foi suficiente. É verdade que a votação, além de ilegal, foi feita sem nenhuma garantia, com censo universal, casos de pessoas votando mais de uma vez, sem comissão eleitoral para certificar os resultados e sem certificação dos “observadores” internacionais que se dispuseram a vir ver o que estava acontecendo. Se, num ato de fé, acreditarmos nos dados divulgados pelo governo catalão, votaram 2,286 milhões de pessoas (43% do total de eleitores) e o sim ganhou com 90,18% dos votos.

A verdadeira vitória independentista, no entanto, aconteceu em outra esfera: foram as fotos e videos de violência policial que deram a volta ao mundo. Segundo a narrativa dos seus organizadores, essa inexplicável violência foi dirigida contra eleitores indefensos cujo único objetivo era participar de um ato democrático. Para o governo central a polícia teve que usar a força porque havia cidadãos que tentavam impedi-la de cumprir uma decisão judicial. O fato é que essas imagenss foram parar nos jornais e TVs do mundo todo e deixaram Mariano Rajoy, o primeiro-ministro, numa tremenda saia-justa. Pouco importa que todas as cenas de violência tenham acontecido exclusivamente em dois dos 3.500 colégios eleitorais, ou que só 4 dos 800 feridos tenham precisado passar (e não ser internados) por um hospital. O independentismo parecia ter ganho a batalha internacional da sociedade do espetáculo.

Foi uma vitória de Pirro, porque a inação dos dias seguintes levou a um estranho anti-clímax. E como em política os vazios são logo preenchidos, deu tempo da maré virar, com grandes bancos primeiro, grandes empresas depois, anunciando que mudavam seu domicílio social e fiscal para fora da Catalunha. Estava acontecendo o que os independentistas diziam que nunca aconteceria. No domingo 8 de outubro os unionistas organizaram uma demonstração em Barcelona contra a independência e o número de participantes ultrapassou qualquer expectativa de qualquer um dos lados. O independentismo precisava reagir.

A reação veio sob a forma de uma sessão do Parlamento regional, na qual o presidente da Catalunha fez uma declaração de independência, para imediatamente em seguida suspendê-la. Ninguém parece ter dado maior importância ao fato dessa declaração meia-boca infringir a própria lei votada semanas antes pelos independentistas (segundo a lei, o Parlamento votaria a idenpendência 48 horas depois de proclamados os resultados do referendum pela comissão eleitoral). Foi a ducha final de água fria, que fez sair a público as divergências de opinião dentro do bloco independentista.

Na hora do vamos-ver, hesitou Carles Puigdemont. Qualquer pessoa razoavelmente informada e imparcial sabe que uma DUI (declaração unilateral de independência) é uma loucura, que levaria a um desastre econômico e social se vingasse. Nestas duas semanas ficou explícita a solidão internacional do governo catalão. Nenhum dirigente de nenhum país ofereceu-se para mediar o conflito. A União Europeia é unânime em dizer que se trata de um problema interno espanhol. Nos últimos dias seus máximos representantes deixaram claro que uma Catalunha independente estaria automaticamente fora da União Europeia. Não há nada organizado para fazer o país funcionar separado da Espanha. A improvisação causou insegurança jurídica máxima.

Na semana passada o governo espanhol deu prazo até às 10:00 de amanhã para que Puigdemont esclareça se declarou ou não a independência, e até quinta-feira para dar volta atrás, caso a tenha declarado. Do contrário aplicará o artigo 155 da Constituição, que permite intervir no governo local. Tanto o Partido Socialista como o partido Ciudadanos o apoiam nessa iniciativa. Diga Piugdemont o que disser, faça o que fizer, parece claro que o sonho (ou pesadelo) independentista chega ao fim. Pode ainda haver protestos, confrontos, algum drama, mas não é dessa vez que a Catalunha se tornará uma república independente. Esse trem já partiu, sem que os seus protagonistas tivessem tomado seus assentos. O mais provável é que em breve tenhamos eleições regionais. Será o melhor termômetro para avaliar quem conta com o apoio de quem.

domingo, 17 de setembro de 2017

ASAMG - O Catalanismo e Oscar Wilde

Há dez dias aconteceu o inacreditável: o parlamento catalão aprovou a chamada lei de desconexão. Essa lei basicamente diz que tanto a Constituição espanhola como o Estatuto de Autonomia da Catalunha deixam de ter primazia no seu ordenamento jurídico. Também estabelece que o povo da Catalunha é soberano e abre a porta para que se celebre um plebiscito de independência, convocado para o dia 1 de outubro. Se houver maioria de votos favoráveis, sem quórum mínimo fixado, no dia 2 será proclamada a independência e criada a República Catalã.

A aprovação dessa lei só foi possível depois de mudar o regulamento do parlamento, que agora permite a aprovação “express”. Isso quer dizer que a Lei de Desconexão pôde ser aprovada com maioria simples, depois de leitura única, com duas horas de prazo para a oposição propor emendas, sem discussão em nenhuma comissão parlamentar, ignorando o parecer contrário da Comissão de Garantias, que desaconselhou a sua aprovação por ilegal. A lei é contrária à Constituição espanhola, ainda vigente, ao Estatuto de Autonomia, idem, e ao regulamento interno do próprio parlamento. Pior, foi aprovada por deputados que obtiveram 47,8% dos votos nas últimas eleições, que eles mesmos chamaram de plebiscitárias.

Como era de se esperar, o Tribunal Constitucional suspendeu a aplicação dessas leis e decretos conexos e, desde então, na Catalunha vive-se em dois mundos que não se comunicam: o da legalidade espanhola e o mundo de fantasia das autoridades regionais, que insistem em dizer que seu auto-golpe de estado é plenamente legal e vigente, porque a partir do momento em que foi aprovada a lei de desconexão nem o Estado espanhol, nem o Tribunal Constitucional têm autoridade para interferir no que é decidido pelo Parlamento catalão, que consideram soberano ao representar a “vontade” da maioria do povo catalão.

Não vou entrar no debate jurídico sobre o que é, para qualquer pessoa de bom senso, um golpe de estado autoritário. Quando a constituição de um estado democrático (votada favoravelmente em plebiscito por mais de 90% dos eleitores catalães) ou o Estatuto de autonomia (aprovado em plebiscito por 73,9 % dos votantes) são simplesmente declarados não válidos, porque sim, esse é o fim da democracia, não o seu começo. Quantos atos autoritários mais estão dispostos a perpretar esses políticos?

Tampouco vou comentar como o populismo, principalmente o de cariz nacionalista, pode levar gente razoável a defender o indefensável e tornar-se bastante irracional. Grande parte do problema reside exatamente no fato de que a ladainha nacionalista há muito abandonou a racionalidade e vive de semi-verdades, mentiras descaradas, manipulações e apelos emocionais. É difícil combater nesse terreno, quase impossível. Mas o mais assustador é que tamanho desafio à democracia possa ocorrer num Estado democrático, no seio da União Européia. Uma prova do poder de estrago tanto do populismo quanto do nacionalismo, ainda mais quando vão de mãos dadas.

Mesmo não entrando nas considerações acima, há um aspecto desse conflito que me chama muito a atenção: que pretendem realmente os políticos independentistas? Quando se ouve as declarações de Carles Puigdemont, presidente da Generalitat, sobre a nova legalidade vigente na Catalunha, a impressão é que ele vive numa realidade paralela, num mundo de faz-de-conta. Nenhuma novidade, ele diz o que os seus seguidores querem ouvir. O impensável é achar que ele acredite um só momento nas suas próprias declarações, na possibilidade de êxito do seu desafio. Mas então, o que ele e os seus pretendem de fato?

O presidente da Generalitat, o seu gabinete e a presidente do Parlamento desobedeceram a Constituição, o Estatuto de Autonomia, o regimento interno e as decisões do Tribunal Constitucional. Tudo isso é passível de ser considerado crime, que pode ter penas inclusive de prisão. Eles serão investigados, denunciados e julgados. A única maneira de evitar uma condenação é se a Catalunha se tornar realmente uma república independente e o arcabouço jurídico espanhol deixar de valer.

Um golpe de estado, tal como os governantes locais pretendem perpretar, necessita do poder de coerção do Estado para funcionar. É preciso que os cidadãos acreditem (ou sintam) que as novas leis, por autoritárias que sejam, são para valer. Mais ainda, no caso de uma secessão, é preciso que o novo Estado tenha mais poder de coerção do que aquele de quem se separa. É óbvio que o poder do Estado espanhol é muito maior do que o do hipotético Estado catalão. A independência só ocorreria se o Estado espanhol deixasse. Bastaria interromper o financiamento para tornar o projeto independentista inviável. Se é assim, o que pretendem os políticos independentistas? O que esperam ganhar com sua frivolidade?

O referendum está convocado para dentro de duas semanas. O governo espanhol diz que o impedirá. O mais provável é que não o impeça totalmente. Será uma votação meia-boca, feita sem nenhuma garantia, nenhuma transparência e seu resultado dificilmente será aceito por nenhum país sério. Seja qual for o número de votantes, o sim ganhará de lavada. Não porque essa seja a vontade dos eleitores da Catalunha, mas porque a maioria é contrária à gambiarra ilegal que se está tentando fazer passar por democracia e não vai votar. E aí, o que acontece? Em teoria, no dia 2 nasce um novo país.

Não acredito nem um só minuto na viabilidade desse país. No entanto, há que pôr as barbas de molho, porque a História está cheia de barbaridades que se tornam realidade. Nesse caso, a observação de Oscar Wilde se aplicaria à perfeição aos apoiadores da independência: “Quando os deuses querem nos punir, eles ouvem as nossas preces”. Tomara que não.

domingo, 3 de setembro de 2017

ASAMG - Um País Quebrado

Em agosto estive duas semanas em São Paulo. Tirando uma breve passagem pela cidade em junho, de quarenta e oito horas, não ia para lá desde dezembro de 2016. Fiquei impressionado com o que vi. Mal impressionado, quero dizer. Nesse intervalo de oito meses todo o descalabro da pior crise econômica dos últimos noventa anos se materializou e tornou-se visível nas ruas e praças da cidade. Qualquer rua, qualquer praça.

Desde a crise dos anos 80, quando era um jovem estudante universitário, não via tanta pobreza explícita. Desta vez não deu para ir ao Rio de Janeiro, mas amigos me contam que a situação por lá está ainda pior. Pela primeira vez em duas décadas vários conhecidos falam em ir embora do país – um casal amigo já está com data marcada e passagem comprada. O estarrecimento, desânimo e decepção estão por toda parte. Fazia muito tempo que não via o país tão por baixo.

Não chega a ser uma surpresa – o que se poderia esperar de uma recessão do tamanho da que vivemos? As crises econômicas têm uma dinâmica própria e uma das suas características é que as piores consequências só se tornam visíveis algum tempo depois da economia começar a desandar. Em termos práticos, é agora o fundo do poço, apesar da queda da inflação e de dois trimestres de crescimento (ainda muito modesto) do PIB.

Tal e como escrevi em dezembro de 2015, o mal-estar só começa a desanuviar muito tempo depois dos indicadores terem voltado a ser positivos. No Brasil, o sentimento de melhora só será palpável a partir de meados do ano que vem, e isso se a recuperação se confirmar.

Antes de voltar para a Espanha comprei dois livros sobre a política econômica nos cinco anos e meio do governo Dilma. O primeiro deles, “Como matar a borboleta azul”, da economista Monica Baumgarten de Bolle, terminei de ler na semana passada. Sua maior virtude é a inteligência e argúcia da autora, além dos seus sólidos conhecimentos da matéria. Num país onde não só doutores em economia proferem grandes bobagens sobre o assunto, mas também departamentos inteiros de grandes universidades o fazem, dizer que um economista sabe como funciona a economia não é pouca coisa. E como sabe do que está falando, Monica é extremamente crítica com os desvarios da ex-presidente.

O livro foi escrito visando um grande público e deveria ser de fácil compreensão mesmo para quem não está familiarizado com conceitos ou teorias econômicas. Pode-se dizer que o objetivo foi alcançado, ainda que imagino que algumas passagens não sejam de tão fácil entendimento para não-especialistas, como outras parecem um pouco superficiais para os mais versados. Em qualquer caso, em nenhum momento sacrificou-se a exatidão dos conceitos ou a pertinência da análise. Sem dúvida um livro recomendável, mas só para quem não é impressionável ou não sofre de insônia.

O livro de Monica de Bolle é uma viagem a um mundo de horrores. Apesar de não haver nada de novo no seu relato e de todos conhecermos o abismo onde a incompetência de Dilma Rousseff jogou o Brasil, a verdade é que o livro dá ansiedade e causa mal-estar. Vemos alinhavadas, uma atrás da outra, as bobagens, as barbeiragens, as más decisões, a improvisação e a desconexão da realidade representadas principalmente pelo primeiro mandato da presidente. Só podia dar merda, e deu!

Dilma não é santa de minha devoção. No entanto, seria muito errado dizer que o problema era ela. Por mais incompetente que fosse, e o era, o problema não era só ela. O problema é que pelo menos trinta a quarenta por cento dos eleitores brasileiros ainda vivem com a cabeça nos anos sessenta do século passado. São a esquerda Carolina, a que não viu o tempo passar na janela. É gente que acredita piamente em bobagens como que inflação não é problema, que existiria uma “inflação do bem”, na frase deliciosa de Monica de Bolle; que déficit público tampouco é problema e só os tarados dos neo-liberais se preocupam com isso; acham que dá para criar crescimento e desenvolvimento econômico à base de gasto público, acreditam que o governo tem um papel fundamental na economia, que o mercado e os malditados empresários precisam ser regulados, controlados de perto e de cabresto curto, porque senão será o “apocalipis”. Enfim, o extenso besteirol que no Brasil recebe o nome de desenvolvimentismo e que deu origem à exótica “nova matriz econômica” tem muitos adeptos. É gente demais acreditando em teorias mágicas, por muitos desastres que elas produzam.

Preciso de um tempo antes de começar a ler “Anatomia de Um Desastre” de Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira. O título do livro sugere que os autores sejam igualmente críticos com a presidente defenestrada. Mesmo que não sejam, simplesmente relembrar todas as piruetas e fogos de artifício que detonaram o Brasil é o suficiente para derrubar o astral de qualquer um. Melhor dar um tempo antes dessa outra leitura.