domingo, 17 de setembro de 2017

ASAMG - O Catalanismo e Oscar Wilde

Há dez dias aconteceu o inacreditável: o parlamento catalão aprovou a chamada lei de desconexão. Essa lei basicamente diz que tanto a Constituição espanhola como o Estatuto de Autonomia da Catalunha deixam de ter primazia no seu ordenamento jurídico. Também estabelece que o povo da Catalunha é soberano e abre a porta para que se celebre um plebiscito de independência, convocado para o dia 1 de outubro. Se houver maioria de votos favoráveis, sem quórum mínimo fixado, no dia 2 será proclamada a independência e criada a República Catalã.

A aprovação dessa lei só foi possível depois de mudar o regulamento do parlamento, que agora permite a aprovação “express”. Isso quer dizer que a Lei de Desconexão pôde ser aprovada com maioria simples, depois de leitura única, com duas horas de prazo para a oposição propor emendas, sem discussão em nenhuma comissão parlamentar, ignorando o parecer contrário da Comissão de Garantias, que desaconselhou a sua aprovação por ilegal. A lei é contrária à Constituição espanhola, ainda vigente, ao Estatuto de Autonomia, idem, e ao regulamento interno do próprio parlamento. Pior, foi aprovada por deputados que obtiveram 47,8% dos votos nas últimas eleições, que eles mesmos chamaram de plebiscitárias.

Como era de se esperar, o Tribunal Constitucional suspendeu a aplicação dessas leis e decretos conexos e, desde então, na Catalunha vive-se em dois mundos que não se comunicam: o da legalidade espanhola e o mundo de fantasia das autoridades regionais, que insistem em dizer que seu auto-golpe de estado é plenamente legal e vigente, porque a partir do momento em que foi aprovada a lei de desconexão nem o Estado espanhol, nem o Tribunal Constitucional têm autoridade para interferir no que é decidido pelo Parlamento catalão, que consideram soberano ao representar a “vontade” da maioria do povo catalão.

Não vou entrar no debate jurídico sobre o que é, para qualquer pessoa de bom senso, um golpe de estado autoritário. Quando a constituição de um estado democrático (votada favoravelmente em plebiscito por mais de 90% dos eleitores catalães) ou o Estatuto de autonomia (aprovado em plebiscito por 73,9 % dos votantes) são simplesmente declarados não válidos, porque sim, esse é o fim da democracia, não o seu começo. Quantos atos autoritários mais estão dispostos a perpretar esses políticos?

Tampouco vou comentar como o populismo, principalmente o de cariz nacionalista, pode levar gente razoável a defender o indefensável e tornar-se bastante irracional. Grande parte do problema reside exatamente no fato de que a ladainha nacionalista há muito abandonou a racionalidade e vive de semi-verdades, mentiras descaradas, manipulações e apelos emocionais. É difícil combater nesse terreno, quase impossível. Mas o mais assustador é que tamanho desafio à democracia possa ocorrer num Estado democrático, no seio da União Européia. Uma prova do poder de estrago tanto do populismo quanto do nacionalismo, ainda mais quando vão de mãos dadas.

Mesmo não entrando nas considerações acima, há um aspecto desse conflito que me chama muito a atenção: que pretendem realmente os políticos independentistas? Quando se ouve as declarações de Carles Puigdemont, presidente da Generalitat, sobre a nova legalidade vigente na Catalunha, a impressão é que ele vive numa realidade paralela, num mundo de faz-de-conta. Nenhuma novidade, ele diz o que os seus seguidores querem ouvir. O impensável é achar que ele acredite um só momento nas suas próprias declarações, na possibilidade de êxito do seu desafio. Mas então, o que ele e os seus pretendem de fato?

O presidente da Generalitat, o seu gabinete e a presidente do Parlamento desobedeceram a Constituição, o Estatuto de Autonomia, o regimento interno e as decisões do Tribunal Constitucional. Tudo isso é passível de ser considerado crime, que pode ter penas inclusive de prisão. Eles serão investigados, denunciados e julgados. A única maneira de evitar uma condenação é se a Catalunha se tornar realmente uma república independente e o arcabouço jurídico espanhol deixar de valer.

Um golpe de estado, tal como os governantes locais pretendem perpretar, necessita do poder de coerção do Estado para funcionar. É preciso que os cidadãos acreditem (ou sintam) que as novas leis, por autoritárias que sejam, são para valer. Mais ainda, no caso de uma secessão, é preciso que o novo Estado tenha mais poder de coerção do que aquele de quem se separa. É óbvio que o poder do Estado espanhol é muito maior do que o do hipotético Estado catalão. A independência só ocorreria se o Estado espanhol deixasse. Bastaria interromper o financiamento para tornar o projeto independentista inviável. Se é assim, o que pretendem os políticos independentistas? O que esperam ganhar com sua frivolidade?

O referendum está convocado para dentro de duas semanas. O governo espanhol diz que o impedirá. O mais provável é que não o impeça totalmente. Será uma votação meia-boca, feita sem nenhuma garantia, nenhuma transparência e seu resultado dificilmente será aceito por nenhum país sério. Seja qual for o número de votantes, o sim ganhará de lavada. Não porque essa seja a vontade dos eleitores da Catalunha, mas porque a maioria é contrária à gambiarra ilegal que se está tentando fazer passar por democracia e não vai votar. E aí, o que acontece? Em teoria, no dia 2 nasce um novo país.

Não acredito nem um só minuto na viabilidade desse país. No entanto, há que pôr as barbas de molho, porque a História está cheia de barbaridades que se tornam realidade. Nesse caso, a observação de Oscar Wilde se aplicaria à perfeição aos apoiadores da independência: “Quando os deuses querem nos punir, eles ouvem as nossas preces”. Tomara que não.

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