Há dez
dias aconteceu o inacreditável: o parlamento catalão aprovou a chamada lei de
desconexão. Essa lei basicamente diz que tanto a Constituição espanhola como o
Estatuto de Autonomia da Catalunha deixam de ter primazia no seu ordenamento
jurídico. Também estabelece que o povo da Catalunha é soberano e abre a porta
para que se celebre um plebiscito de independência, convocado para o dia 1 de
outubro. Se houver maioria de votos favoráveis, sem quórum mínimo fixado, no
dia 2 será proclamada a independência e criada a República Catalã.
A
aprovação dessa lei só foi possível depois de mudar o regulamento do parlamento,
que agora permite a aprovação “express”. Isso quer dizer que a Lei de
Desconexão pôde ser aprovada com maioria simples, depois de leitura única, com
duas horas de prazo para a oposição propor emendas, sem discussão em nenhuma
comissão parlamentar, ignorando o parecer contrário da Comissão de Garantias,
que desaconselhou a sua aprovação por ilegal. A lei é contrária à Constituição
espanhola, ainda vigente, ao Estatuto de Autonomia, idem, e ao regulamento
interno do próprio parlamento. Pior, foi aprovada por deputados que obtiveram
47,8% dos votos nas últimas eleições, que eles mesmos chamaram de
plebiscitárias.
Como era
de se esperar, o Tribunal Constitucional suspendeu a aplicação dessas leis e
decretos conexos e, desde então, na Catalunha vive-se em dois mundos que não se
comunicam: o da legalidade espanhola e o mundo de fantasia das autoridades
regionais, que insistem em dizer que seu auto-golpe de estado é plenamente
legal e vigente, porque a partir do momento em que foi aprovada a lei de
desconexão nem o Estado espanhol, nem o Tribunal Constitucional têm autoridade
para interferir no que é decidido pelo Parlamento catalão, que consideram
soberano ao representar a “vontade” da maioria do povo catalão.
Não vou
entrar no debate jurídico sobre o que é, para qualquer pessoa de bom senso, um
golpe de estado autoritário. Quando a constituição de um estado democrático (votada
favoravelmente em plebiscito por mais de 90% dos eleitores catalães) ou o
Estatuto de autonomia (aprovado em plebiscito por 73,9 % dos votantes) são simplesmente declarados não válidos, porque sim, esse é o fim da democracia, não
o seu começo. Quantos atos autoritários mais estão dispostos a perpretar esses
políticos?
Tampouco
vou comentar como o populismo, principalmente o de cariz nacionalista, pode
levar gente razoável a defender o indefensável e tornar-se bastante irracional.
Grande parte do problema reside exatamente no fato de que a ladainha nacionalista
há muito abandonou a racionalidade e vive de semi-verdades, mentiras
descaradas, manipulações e apelos emocionais. É difícil combater nesse terreno,
quase impossível. Mas o mais assustador é que tamanho desafio à democracia
possa ocorrer num Estado democrático, no seio da União Européia. Uma prova do
poder de estrago tanto do populismo quanto do nacionalismo, ainda mais quando
vão de mãos dadas.
Mesmo não
entrando nas considerações acima, há um aspecto desse conflito que me chama
muito a atenção: que pretendem realmente os políticos independentistas? Quando
se ouve as declarações de Carles Puigdemont, presidente da Generalitat, sobre a
nova legalidade vigente na Catalunha, a impressão é que ele vive numa realidade
paralela, num mundo de faz-de-conta. Nenhuma novidade, ele diz o que os seus
seguidores querem ouvir. O impensável é achar que ele acredite um só momento
nas suas próprias declarações, na possibilidade de êxito do seu desafio. Mas
então, o que ele e os seus pretendem de fato?
O
presidente da Generalitat, o seu gabinete e a presidente do Parlamento
desobedeceram a Constituição, o Estatuto de Autonomia, o regimento interno e as
decisões do Tribunal Constitucional. Tudo isso é passível de ser considerado
crime, que pode ter penas inclusive de prisão. Eles serão investigados,
denunciados e julgados. A única maneira de evitar uma condenação é se a
Catalunha se tornar realmente uma república independente e o arcabouço jurídico
espanhol deixar de valer.
Um golpe
de estado, tal como os governantes locais pretendem perpretar, necessita do
poder de coerção do Estado para funcionar. É preciso que os cidadãos acreditem
(ou sintam) que as novas leis, por autoritárias que sejam, são para valer. Mais
ainda, no caso de uma secessão, é preciso que o novo Estado tenha mais poder de
coerção do que aquele de quem se separa. É óbvio que o poder do Estado
espanhol é muito maior do que o do hipotético Estado catalão. A independência
só ocorreria se o Estado espanhol deixasse. Bastaria interromper o
financiamento para tornar o projeto independentista inviável. Se é assim, o que
pretendem os políticos independentistas? O que esperam ganhar com sua
frivolidade?
O
referendum está convocado para dentro de duas semanas. O governo espanhol diz
que o impedirá. O mais provável é que não o impeça totalmente. Será uma votação
meia-boca, feita sem nenhuma garantia, nenhuma transparência e seu resultado
dificilmente será aceito por nenhum país sério. Seja qual for o número de votantes,
o sim ganhará de lavada. Não porque essa seja a vontade dos eleitores da
Catalunha, mas porque a maioria é contrária à gambiarra ilegal que se está
tentando fazer passar por democracia e não vai votar. E aí, o que acontece? Em teoria, no dia 2
nasce um novo país.