Quando estive no Brasil em Janeiro fiz uma arrumação dos meus livros em São Paulo. Encontrei um exemplar sobre a Questão Urbana, de uma série publicada nos anos oitenta chamada "Brasil, Os Anos de Autoritarismo". Os autores são Benício Schmidt e Ricardo Farret.
Quando estava na Universidade tanto demografia quanto desenvolvimento urbano eram dois temas que me interessavam muito. Na época li muitas coisas a respeito. Chamavam-me particularmente a atenção os autores que diziam que o Brasil ia fazer a mudança de padrão demográfico em meio século, quando na maioria dos países da Europa o mesmo processo tinha levado cem anos. Em resumo isso queria dizer passar de uma população predominantemente rural para predominantemente urbana, além de haver uma redução drástica na taxa de fertilidade da mulher, com consequências sobre a taxa de crescimento demográfico primeiro e envelhecimento da população depois.
Reli o livrinho de Schmidt e Farret. Eles trabalharam com dados do censo de 1980 e projeções para o ano 2000. É interessante ver como as projeções estavam furadas. Eles citam um relatório da CNDU para argumentar que no ano 2000 a população urbana do país seria de 160 milhões de habitantes, sendo que representaria pouco mais de oitenta por cento da população total, ou seja, o Brasil teria para o ano 2000 quase duzentos milhões de habitantes. O alarmante da projeção é que entre 1980 e 2000 a população urbana dobraria, ou seja, segundo os autores "Isto implica construir uma área urbana correspondente à que foi contruída no Brasil desde 1500 até hoje."
Quem se interessa por temas demográficos deve estar mais que acostumado a previsões exageradas sobre crescimentos populacionais. É assim desde Malthus. Essa tendência muitas vezes foi reforçada pelo discurso da esquerda, como se exagerando o tamanho dos problemas sociais no futuro aumentasse a sua importância no presente. No caso do livro citado os autores argumentam que a população brasileira passaria de 119 milhões de habitantes em 1980 a quase 200 milhões em 2.000. Portanto um aumento de 81 milhões de pessoas. O Censo de 2.000 só encontrou 170 milhões vivendo no Brasil, portanto eles erraram em 30 dos 81 milhões previstos. É o mesmo que dizer que a previsão com que eles trabalhavam resultou ser 59% maior do que a realidade. Isto em apenas 20 anos!
O chato das previsões é que um dia o futuro chega, vira presente. Errar em previsões econômicas ou políticas pode ser feio, mas ao menos elas são como a previsão do tempo: são muitos os fatores que podem influenciar o resultado final, portanto o erro é mais frequente e compreensível. Errar em demografia deveria ser mais vegonhoso, porque o cálculo é muito mais matemático. Basta, porém, fazer uma hipótese furada e todo o resultado fica comprometido. Das previsões sobre crescimento demográfico que vi no Brasil nos últimos vinte anos os dois erros mais frequentes foram exagerar a taxa de fertilidade da mulher brasileira (ou prever uma queda mais lenta do que aconteceu na realidade) e menosprezar a força da urbanização, errando feio na evolução da população rural, tanto em números absolutos como relativos.
Hoje mesmo entrei na página web do IBGE à procura de dados recentes. Eles têm uma projeção da população brasileira até o ano 2050, quando o país teria 260 milhões de habitantes. Achei super exagerado. Eu já me acostumei a dar um desconto nos números do IBGE, porque eles normalmente erram para mais. Como eu esperava ver resultados muito diferentes, algo como que a população deixará de crescer entre 2010 e 2020 e que no ponto máximo teremos uma população entre 215 e 225 milhões de almas, tive a paciência de ler toda a explicação sobre a metodologia de cálculo que eles utilizaram. Pode parecer petulância minha dizer algo como "os critérios pareciam razoáveis", mas esta foi minha opinião. Então, como chegam a um resultado tão acima das minhas próprias contas que, já sei, são infinitamente menos sofisticadas? Mais uma vez o suspeito de sempre: provavelmente eles assumiram uma taxa de fertilidade demasiadamente exagerada. Esta evidência é tanto maior quando comparamos que na sua projeção, revisada em 2004 (há menos de quatro anos!), eles previam uma população em 2008 de 191,9 milhões de habitantes. Nas contas atuais, o número que aparecia hoje na página web era de apenas 186,7. Uma diferença de 5,2 milhões! Se agora eles já reconhecem tamanha diferença, o que não dizer dos números de 2050? Não apostaria nem um cruzado novo de que eles sejam razoáveis.
Isso tudo não é para criticar nem os demógrafos mais catastrofistas, nem o IBGE, mas simplesmente para chamar a atenção para uma das mudanças fundamentais que está ocorrendo no Brasil, não apenas nos últimos quinze anos, há bastante mais tempo, e que é a redução do crescimento demográfico. Essa mudança não é nem evidente nem é muito comunicada, mas é uma realidade da maior importância. Ela ajuda a explicar, por exemplo, que tanta gente tenha saído da miséria e pobreza nos últimos vinte anos: quando a população cresce menos o crescimento da economia se reflete mais rápido em maior renda per capita. Isso também quer dizer que como sociedade estamos diante de uma oportunidade histórica de melhorar de maneira significativa o quadro social do país, pois os investimentos sociais, em infra-estrutura e o crescimento da economia terão um maior impacto sobre a população, pois esta não estará crescendo tanto como no passado.
A demografia está jogando a favor pelos próximos vinte ou trinta anos. Chegará um momento em que o envelhecimento da população será um problema, principalmente pela pressão que fará sobre o sistema de saúde e a previdência social. Mas por enquanto o Brasil ainda é jovem e deixar de crescer é uma notícia para comemorar com Champagne. Modestamente, dei minha contribuição: não tive filhos e emigrei. Mais que isso, só dentro de alguns anos, quando deixar de respirar. Será minha última e mais duradoura contribuição para diminuir a população do planeta!
quinta-feira, 24 de abril de 2008
quinta-feira, 17 de abril de 2008
ASAMG - Quinze anos fora (quatro)
Um dia disse para um amigo brasileiro em Barcelona que "estava maus". Ele ficou me olhando como se eu fosse um recém chegado de Marte. Peguntei qual era o problema. "Ninguém mais fala que está maus, Maurício". "Como não, todo mundo fala assim". Apesar de não acreditar muito no que havia dito o meu amigo, fiquei passado - bom, sei lá se as pessoas ainda ficam passadas. Enfim, senti que o passar do tempo começava a deixar suas marcas. Era como se tivesse dito "boco-moco" ou "tudo joinha". Será que eu estava começando a falar em brasileiro antigo? Da vez seguinte que fui para o Brasil perguntei para familiare e amigos e a confirmação de que ninguém mais ficava maus me deixou definitivamente maus.
Dizem que o Nélson Piquet falava (ou fala) asssim, em brasileiro antigo. Como nunca me interessei por fórmula 1 e nunca vi uma entrevista do Piquet, não sei se é certo. Lembro que quando trabalhava numa multinacional alemã em São Paulo de vez em quando ouvia algum alemão recém chegado fazendo comentários sobre como falavam os brasileiros descendentes de alemães e que tinham aprendido a falar alemão em casa: por mais atualizados que estivessem, vira e mexe soltavam alguma palavra ou expressão que na Alemanha não era mais usada. Claro, os emigrados de longa data continuavam usando o vocabulário de sempre, sem necessariamente estar se adaptando à evolução do alemão na Alemanha.
É mais que normal. Língua é um instrumento vivo e dinâmico. Por mais conservador que seja o país neste assunto, os idiomas sempre evoluem. É frequente que entre países que falam a mesma língua com o passar do tempo haja cada vez mais divergência. Em "My Fair Lady" o Prof. Higgins diz que nos Estados Unidos não se fala inglês há anos… Desde que morei em Portugal digo que no Brasil falamos brasileiro, porque é muito diferente do português original. Ainda assim, quando minha irmã me disse rindo, há muitos anos, que meu sobrinho achava que eu falava "esquisito", mais uma vez fiquei maus.
Para mim é difícil constatar o que já não se diz. Sei lá se sou o último dos moicanos em usar essa paulistanada tão genuina que é chamar os outros de "meu", mas para mim todo mundo continua sendo "ô meu". Também não sei se em São Paulo continua havendo essa moeda especial que era o "pau". Nós sempre chamamos qualquer mil dinheiros (cruzeiros, cruzados, cruzados novos ou qualquer outro) de pau. Um pau e meio? Mil e quinhentos. Dez paus? Dez mil. Acho que faz tempo que não ouço ninguém dizer nenhum valor em paus, pode ser que o mesmo tenha acabado com o Irreal e o fim da inflação. Não sei dizer. Normalmente só me dou conta que uma expressão é démodée (costureiro falava assim antigamente) quando vejo o risinho irônico nos lábios do meu interlocutor. Já nem pergunto se ninguém mais fala assim. Perguntar para que?
É mais fácil enumerar as palavras e expressões que foram aparecendo nestes anos e que, quando as ouvi pela primeira vez, não tinha idéia do que fossem:
Ficar. Essa é muito velha, eu sei, mas meu, faz quinze anos que eu saí daí. No meu tempo se você dissesse que tinha ficado com uma garota iam perguntar "ficado onde"? Eu sei que "ficar" é quase tão velho como "dar um rolê", mas quem é que dava rolê no começo da década passada? Ninguém que eu conhecesse, isso veio depois.
Sarado. Ouvi várias vezes, principalmente no Rio. Dava para intuir o significado, mas tive que perguntar para ter certeza. Sarado ou sarada é quem antigamente malhava na academia e ficava com um corpo, bueno, isso, sarado.
Mala. Não dava para entender. O que é uma pessoa mala? Gorda? Só de ouvido não conseguia saber exatamente quando qualificar alguém de mala. Tive que perguntar, que remédio. A melhor explicação foi quando me disseram: alguém que é tão incômodo ou inconveniente como uma mala sem alça. Ah, bom, então tá!
Mensalão. O significado foi facílimo de entender. Antes ninguém falava de mensalão, desde o dito cujo diariamente esta palavra aparece nos jornais. PT, quem te viu e quem te ve, contribuindo para a riqueza do idioma…
Sussa (suponho que se escreve com "ss" como sossegado). Outra palavra que não teria adivinhado nunca, porque a verdade é que sussa poderia ser qualquer coisa. Até me dizerem "Sussa, sossegado". Ah, sei.
Sem noção. Claro e gostoso de usar, mas eu ainda prefiro o poucaleitura de antanho, parece-me mais gráfico.
Bombando. Foi a palabra da minha última viagem ao Brasil, no começo deste ano. De repente estava tudo bombando. "Bombando" estava bombando. Na minha época bombar era tomar pau na escola. Agora é outra coisa.
Na viagem com meus primos me contaram uma história que ainda não sei se é verdade ou se estavam "zoando" comigo (antigamente era tirar sarro da minha cara, quase escrevo assim, ainda bem que lembrei a tempo do verbo zoar): quando eu morava aí havia uma marca de bala de goma chamada Jujuba e os "jelly beans" da antiga Kibbon se chamavam delicado. Segundo eles, hoje os antigos delicados são chamados de jujuba porque parece delicado demais chamar jelly beans de delicado. Sei lá, mil coisas.
Véio. Neste verão fui para a praia convidado por amigos e pude descobrir como adolescentes falam entre si. O que mais me chamou a atenção foi que se chamam de "véio", como nós trinta anos atrás poderíamos nos chamar de "mano" ou em carioquês "m'ermão".
Esta é apenas uma amostra. Quanto mais tempo passa, mais desatualizado fico. Dizendo coisas que ninguém mais diz, ouvindo coisas que não sei o que são. Se somarmos a (má) influência do espanhol, com tantas palavras tão parecidas mas não idênticas, não é de surpreender que de vez em quando digo coisas que até Deus duvida. E aí tenho que aguentar meu sobrinho ou qualquer outra pessoa dizendo que falo esquisito. Güenta coração! Ao menos é o que quinze anos atrás teria dito.
Dizem que o Nélson Piquet falava (ou fala) asssim, em brasileiro antigo. Como nunca me interessei por fórmula 1 e nunca vi uma entrevista do Piquet, não sei se é certo. Lembro que quando trabalhava numa multinacional alemã em São Paulo de vez em quando ouvia algum alemão recém chegado fazendo comentários sobre como falavam os brasileiros descendentes de alemães e que tinham aprendido a falar alemão em casa: por mais atualizados que estivessem, vira e mexe soltavam alguma palavra ou expressão que na Alemanha não era mais usada. Claro, os emigrados de longa data continuavam usando o vocabulário de sempre, sem necessariamente estar se adaptando à evolução do alemão na Alemanha.
É mais que normal. Língua é um instrumento vivo e dinâmico. Por mais conservador que seja o país neste assunto, os idiomas sempre evoluem. É frequente que entre países que falam a mesma língua com o passar do tempo haja cada vez mais divergência. Em "My Fair Lady" o Prof. Higgins diz que nos Estados Unidos não se fala inglês há anos… Desde que morei em Portugal digo que no Brasil falamos brasileiro, porque é muito diferente do português original. Ainda assim, quando minha irmã me disse rindo, há muitos anos, que meu sobrinho achava que eu falava "esquisito", mais uma vez fiquei maus.
Para mim é difícil constatar o que já não se diz. Sei lá se sou o último dos moicanos em usar essa paulistanada tão genuina que é chamar os outros de "meu", mas para mim todo mundo continua sendo "ô meu". Também não sei se em São Paulo continua havendo essa moeda especial que era o "pau". Nós sempre chamamos qualquer mil dinheiros (cruzeiros, cruzados, cruzados novos ou qualquer outro) de pau. Um pau e meio? Mil e quinhentos. Dez paus? Dez mil. Acho que faz tempo que não ouço ninguém dizer nenhum valor em paus, pode ser que o mesmo tenha acabado com o Irreal e o fim da inflação. Não sei dizer. Normalmente só me dou conta que uma expressão é démodée (costureiro falava assim antigamente) quando vejo o risinho irônico nos lábios do meu interlocutor. Já nem pergunto se ninguém mais fala assim. Perguntar para que?
É mais fácil enumerar as palavras e expressões que foram aparecendo nestes anos e que, quando as ouvi pela primeira vez, não tinha idéia do que fossem:
Ficar. Essa é muito velha, eu sei, mas meu, faz quinze anos que eu saí daí. No meu tempo se você dissesse que tinha ficado com uma garota iam perguntar "ficado onde"? Eu sei que "ficar" é quase tão velho como "dar um rolê", mas quem é que dava rolê no começo da década passada? Ninguém que eu conhecesse, isso veio depois.
Sarado. Ouvi várias vezes, principalmente no Rio. Dava para intuir o significado, mas tive que perguntar para ter certeza. Sarado ou sarada é quem antigamente malhava na academia e ficava com um corpo, bueno, isso, sarado.
Mala. Não dava para entender. O que é uma pessoa mala? Gorda? Só de ouvido não conseguia saber exatamente quando qualificar alguém de mala. Tive que perguntar, que remédio. A melhor explicação foi quando me disseram: alguém que é tão incômodo ou inconveniente como uma mala sem alça. Ah, bom, então tá!
Mensalão. O significado foi facílimo de entender. Antes ninguém falava de mensalão, desde o dito cujo diariamente esta palavra aparece nos jornais. PT, quem te viu e quem te ve, contribuindo para a riqueza do idioma…
Sussa (suponho que se escreve com "ss" como sossegado). Outra palavra que não teria adivinhado nunca, porque a verdade é que sussa poderia ser qualquer coisa. Até me dizerem "Sussa, sossegado". Ah, sei.
Sem noção. Claro e gostoso de usar, mas eu ainda prefiro o poucaleitura de antanho, parece-me mais gráfico.
Bombando. Foi a palabra da minha última viagem ao Brasil, no começo deste ano. De repente estava tudo bombando. "Bombando" estava bombando. Na minha época bombar era tomar pau na escola. Agora é outra coisa.
Na viagem com meus primos me contaram uma história que ainda não sei se é verdade ou se estavam "zoando" comigo (antigamente era tirar sarro da minha cara, quase escrevo assim, ainda bem que lembrei a tempo do verbo zoar): quando eu morava aí havia uma marca de bala de goma chamada Jujuba e os "jelly beans" da antiga Kibbon se chamavam delicado. Segundo eles, hoje os antigos delicados são chamados de jujuba porque parece delicado demais chamar jelly beans de delicado. Sei lá, mil coisas.
Véio. Neste verão fui para a praia convidado por amigos e pude descobrir como adolescentes falam entre si. O que mais me chamou a atenção foi que se chamam de "véio", como nós trinta anos atrás poderíamos nos chamar de "mano" ou em carioquês "m'ermão".
Esta é apenas uma amostra. Quanto mais tempo passa, mais desatualizado fico. Dizendo coisas que ninguém mais diz, ouvindo coisas que não sei o que são. Se somarmos a (má) influência do espanhol, com tantas palavras tão parecidas mas não idênticas, não é de surpreender que de vez em quando digo coisas que até Deus duvida. E aí tenho que aguentar meu sobrinho ou qualquer outra pessoa dizendo que falo esquisito. Güenta coração! Ao menos é o que quinze anos atrás teria dito.
ASAMG - Quinze anos fora (três)
Vejo que este posting foi apagado sem querer. Volto a publicá-lo.
Qual a relevância do Brasil no exterior? Deveria ser alta, afinal somos o quinto maior país do mundo, tanto em tamanho como em população (segundo o Paulo Francis, na sua infância os garotos do Rio costumavam dizer que o Brasil só tem tamanho e sacanagem…) e estamos entre as doze maiores economias do planeta. Vivendo fora o que descobrimos é que a importância do país é muito menor do que seria de se esperar. Com exceção das crises financeiras, e faz tempo que não protagonizamos nenhuma, o que acontece no Brasil tem pouca relevância no mundo. E a recíproca também é verdadeira: é surpreendente o quanto o país ainda é uma ilha, desconectada em muitos sentidos do que acontece fora, vivendo num provincianismo a toda prova. Mas cada vez menos. Se há uma mudança que se faz notar, que se pode palpar fisicamente, é a da chegada do mundo ao Brasil na última década e meia.
Para se constatar o que digo, não é preciso nem sequer sair às ruas: já faz anos que a TV paga traz para dentro de casa (dos que pagam, é claro) canais de diversos países do mundo. Quando eu vivia aí esse era o meu sonho de consumo, apesar de que quase nunca vejo televisão: teria sido a oportunidade para praticar as línguas que já falava. Não menciono a internet porque o fenômeno é global e há quinze anos praticamente ninguém tinha sequer e-mail. O que sim mudou foi a telefonia, pois no início dos anos noventa em São Paulo era quase impossível conseguir uma linha telefônica se não fosse através do mercado paralelo e hoje esse problema não existe.
De casa à rua e mais mudanças: em São Paulo praticamente nunca se via um carro importado. O primeiro Mercedes que vi na vida foi no Rio - nesse sentido o Rio de Janeiro sempre foi mais aristocrático, ainda que cada vez mais probre. No Brasil só havia quatro montadoras e os nossos carros eram carroças, como bem disse o ex-presidente Collor, expressando uma obviedade. Com a abertura do mercado as importações de carros cresceram exponencialmente. Lembro-me que na época os cocorocos e poucaleitura de sempre bradavam contra a inundação de carros importados e todos os males que representavam. Por coincidência, neste momento eu trabalhava na Alemanha, na central de uma multinacional que fabricava tinta para o setor automotivo. Foi quando eles, como tantos outros, decidiram entrar no mercado brasileiro. Pude acompanhar de perto e de dentro o processo. Graças às importações muitas empresas do setor automobilístico puderam iniciar seus negócios no Brasil, criar uma rede de vendas, gerar um nível mínimo de faturação que depois viabilizou o investimento em produção local. Se não tivessem começado importando, a maioria não teria nunca se instalado no país, mas este tipo de coisa costuma estar fora do alcance intelectual dos nacionalistas de plantão. O fato é que hoje há mais montadoras, muitíssimos mais carros importados e a indústria nacional está mais competitiva com relação ao exterior. Basta sair na rua para ver.
Quanto às importações dos demais produtos, uma volta por um grande supermercado é suficiente para se dar conta do quanto o Brasil se abriu ao mundo. Na década de oitenta um dos presentes que mais agradavam quando alguém voltava de viagem à Europa eram os chocolates. Hoje a maioria deles se pode comprar em qualquer supermercado. O mesmo acontece com os vinhos: antes os importados eram poucos, na maioria sul-americanos. Atualmente o vinho está em moda entre a classe média-alta e a oferta de vinhos dos principais países produtores é enorme, tanto nos supermercados como nas muitas lojas que apareceram especializadas no assunto. O mesmo fenômeno se vê nas cartas de vinho dos restaurantes: a variedade e qualidade aumentaram muito e não só nos restaurantes mais sofisticados, também naqueles de nível médio. A cultura do vinho mudou tanto, pelo menos em São Paulo e no Rio, que cada vez mais amigos me contam que compraram sua mini-adega (não sei se é assim que se chamam as geladeirinhas para vinhos). Uma sofisticação típica da época de bonança que se está vivendo e que nos anos noventa nem sequer estava disponível no mercado.
A lista de produtos que hoje podem ser importados é longa. Poderia continuar mencionando muitas outras coisas que antes não se encontravam no Brasil ou que só se conseguiam através de contrabando, gerando toda a criminalidade que está por tras desse tipo de alternativa (vide "Tropa de Elite" e a relaçao entre crime e drogas). Às vezes me dá a sensação de que até um fato tão prosaico como a entrada de empresas editoriais espanholas no mercado brasileiro acabou resultando num número muito maior de traduções e lançamentos de obras publicadas originalmente em espanhol. Pelo menos é o que me parece quando vou a uma mega-livraria de um Shopping qualquer e vejo os mesmos livros, com as mesmas capas, que encontraria nas livrarias espanholas, mas em português.
Apesar de os produtos físicos terem viajado tão bem e hoje o Brasil estar muito mais atualizado com relação ao resto do mundo do que quando eu vivia aí, o mesmo não se pode dizer com respeito às idéias. Estas não pagam imposto de importação e desde o final da censura são de livre circulação pelo país. Mas não adianta, tem certas idéias que não mudam. E não é nos últimos quinze anos não. Boa parte dos esquemas mentais, visões de mundo, valores e idéias que circulam pelo Brasil ainda são os mesmos da década de cinquenta do século passado! Bom, algumas idéias talvez sejam ainda mais antigas. Basta ver o exemplo do princípio de reciprocidade, uma vaca sagrada da nossa diplomacia e apoiada pela maioria absoluta da população. O mundo muda e ninguém se pergunta se essa ainda é a melhor maneira, do ponto de vista dos nossos próprios interesses, de resolver os problemas. Não, dá-lhe reciprocidade diplomática, doa a quem doer - mesmo que doa mais em nós mesmos. Em termos de política e economia então, nem se fala. Bueno, eu falo disso o tempo todo, porque não me conformo com determinadas burrices.
Mas o surpreendente mesmo é que num mundo que está mudando tanto e tão rapidamente, a Ásia só tenha chegado ao Brasil através dos produtos importados. O continente asiático vai ter um papel predominante neste século. No entanto nós ainda somos alheios ao que acontece por lá. Fala-se pouco da Ásia no Brasil. Sabe-se pouco sobre o continente. Desconheço que haja cursos universitários específicos, como por exemplo Administração de Empresas em contexto asiático. Não tenho notícias de que haja uma grande procura por professores de mandarin. Em quase duas semanas viajando por Japão e Hong Kong não encontrei nenhum brasileiro. No último fim de semana, que estava em Londres, ouvi na rua pelo menos uma duzia de vezes alguém falando português do Brasil. Nisso o Brasil não mudou nada nos últimos quinze anos. Este tema, porém, fica para uma próxima oportunidade.
Qual a relevância do Brasil no exterior? Deveria ser alta, afinal somos o quinto maior país do mundo, tanto em tamanho como em população (segundo o Paulo Francis, na sua infância os garotos do Rio costumavam dizer que o Brasil só tem tamanho e sacanagem…) e estamos entre as doze maiores economias do planeta. Vivendo fora o que descobrimos é que a importância do país é muito menor do que seria de se esperar. Com exceção das crises financeiras, e faz tempo que não protagonizamos nenhuma, o que acontece no Brasil tem pouca relevância no mundo. E a recíproca também é verdadeira: é surpreendente o quanto o país ainda é uma ilha, desconectada em muitos sentidos do que acontece fora, vivendo num provincianismo a toda prova. Mas cada vez menos. Se há uma mudança que se faz notar, que se pode palpar fisicamente, é a da chegada do mundo ao Brasil na última década e meia.
Para se constatar o que digo, não é preciso nem sequer sair às ruas: já faz anos que a TV paga traz para dentro de casa (dos que pagam, é claro) canais de diversos países do mundo. Quando eu vivia aí esse era o meu sonho de consumo, apesar de que quase nunca vejo televisão: teria sido a oportunidade para praticar as línguas que já falava. Não menciono a internet porque o fenômeno é global e há quinze anos praticamente ninguém tinha sequer e-mail. O que sim mudou foi a telefonia, pois no início dos anos noventa em São Paulo era quase impossível conseguir uma linha telefônica se não fosse através do mercado paralelo e hoje esse problema não existe.
De casa à rua e mais mudanças: em São Paulo praticamente nunca se via um carro importado. O primeiro Mercedes que vi na vida foi no Rio - nesse sentido o Rio de Janeiro sempre foi mais aristocrático, ainda que cada vez mais probre. No Brasil só havia quatro montadoras e os nossos carros eram carroças, como bem disse o ex-presidente Collor, expressando uma obviedade. Com a abertura do mercado as importações de carros cresceram exponencialmente. Lembro-me que na época os cocorocos e poucaleitura de sempre bradavam contra a inundação de carros importados e todos os males que representavam. Por coincidência, neste momento eu trabalhava na Alemanha, na central de uma multinacional que fabricava tinta para o setor automotivo. Foi quando eles, como tantos outros, decidiram entrar no mercado brasileiro. Pude acompanhar de perto e de dentro o processo. Graças às importações muitas empresas do setor automobilístico puderam iniciar seus negócios no Brasil, criar uma rede de vendas, gerar um nível mínimo de faturação que depois viabilizou o investimento em produção local. Se não tivessem começado importando, a maioria não teria nunca se instalado no país, mas este tipo de coisa costuma estar fora do alcance intelectual dos nacionalistas de plantão. O fato é que hoje há mais montadoras, muitíssimos mais carros importados e a indústria nacional está mais competitiva com relação ao exterior. Basta sair na rua para ver.
Quanto às importações dos demais produtos, uma volta por um grande supermercado é suficiente para se dar conta do quanto o Brasil se abriu ao mundo. Na década de oitenta um dos presentes que mais agradavam quando alguém voltava de viagem à Europa eram os chocolates. Hoje a maioria deles se pode comprar em qualquer supermercado. O mesmo acontece com os vinhos: antes os importados eram poucos, na maioria sul-americanos. Atualmente o vinho está em moda entre a classe média-alta e a oferta de vinhos dos principais países produtores é enorme, tanto nos supermercados como nas muitas lojas que apareceram especializadas no assunto. O mesmo fenômeno se vê nas cartas de vinho dos restaurantes: a variedade e qualidade aumentaram muito e não só nos restaurantes mais sofisticados, também naqueles de nível médio. A cultura do vinho mudou tanto, pelo menos em São Paulo e no Rio, que cada vez mais amigos me contam que compraram sua mini-adega (não sei se é assim que se chamam as geladeirinhas para vinhos). Uma sofisticação típica da época de bonança que se está vivendo e que nos anos noventa nem sequer estava disponível no mercado.
A lista de produtos que hoje podem ser importados é longa. Poderia continuar mencionando muitas outras coisas que antes não se encontravam no Brasil ou que só se conseguiam através de contrabando, gerando toda a criminalidade que está por tras desse tipo de alternativa (vide "Tropa de Elite" e a relaçao entre crime e drogas). Às vezes me dá a sensação de que até um fato tão prosaico como a entrada de empresas editoriais espanholas no mercado brasileiro acabou resultando num número muito maior de traduções e lançamentos de obras publicadas originalmente em espanhol. Pelo menos é o que me parece quando vou a uma mega-livraria de um Shopping qualquer e vejo os mesmos livros, com as mesmas capas, que encontraria nas livrarias espanholas, mas em português.
Apesar de os produtos físicos terem viajado tão bem e hoje o Brasil estar muito mais atualizado com relação ao resto do mundo do que quando eu vivia aí, o mesmo não se pode dizer com respeito às idéias. Estas não pagam imposto de importação e desde o final da censura são de livre circulação pelo país. Mas não adianta, tem certas idéias que não mudam. E não é nos últimos quinze anos não. Boa parte dos esquemas mentais, visões de mundo, valores e idéias que circulam pelo Brasil ainda são os mesmos da década de cinquenta do século passado! Bom, algumas idéias talvez sejam ainda mais antigas. Basta ver o exemplo do princípio de reciprocidade, uma vaca sagrada da nossa diplomacia e apoiada pela maioria absoluta da população. O mundo muda e ninguém se pergunta se essa ainda é a melhor maneira, do ponto de vista dos nossos próprios interesses, de resolver os problemas. Não, dá-lhe reciprocidade diplomática, doa a quem doer - mesmo que doa mais em nós mesmos. Em termos de política e economia então, nem se fala. Bueno, eu falo disso o tempo todo, porque não me conformo com determinadas burrices.
Mas o surpreendente mesmo é que num mundo que está mudando tanto e tão rapidamente, a Ásia só tenha chegado ao Brasil através dos produtos importados. O continente asiático vai ter um papel predominante neste século. No entanto nós ainda somos alheios ao que acontece por lá. Fala-se pouco da Ásia no Brasil. Sabe-se pouco sobre o continente. Desconheço que haja cursos universitários específicos, como por exemplo Administração de Empresas em contexto asiático. Não tenho notícias de que haja uma grande procura por professores de mandarin. Em quase duas semanas viajando por Japão e Hong Kong não encontrei nenhum brasileiro. No último fim de semana, que estava em Londres, ouvi na rua pelo menos uma duzia de vezes alguém falando português do Brasil. Nisso o Brasil não mudou nada nos últimos quinze anos. Este tema, porém, fica para uma próxima oportunidade.
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