quinta-feira, 28 de abril de 2011

ASAMG - O Simbólico no Século XXI

Durante a Idade Média o mundo conhecido, ou seja, aquele onde havia sociedades sedentárias com unidades político-administrativas organizadas e onde havia escrita (e portanto história) se compunha do bloco euro-asiático, norte da África e Oriente Médio. O Ocidente se resumia à Europa e nela as invasões bárbaras e a desintegração do Império Romano levaram ao esvaziamento das cidades, ruralização da população e da economia e ao feudalismo, que durou dez séculos.

No sistema feudal a posição de cada indivíduo na sociedade é determinada pelo nascimento e não há mobilidade possível. Na base da pirâmide estavam os servos, ligados à terra e dependentes do seu senhor. Os senhores, por sua vez, compunham a nobreza e entre eles havia relações de suserania e vassalagem, ou seja, havia uma hierarquização do prestígio relativo de cada família nobre e seus membros. No topo da pirâmide se encontravam as famílias reais. Apesar de que as guerras pudessem levar a alterações na hierarquia, com o aparecimento ou desaparecimento de novos reinos, principados, ducados ou condados, como classe social a nobreza era na prática impermeável, sendo quase sempre inalcançável para pessoas de fora. Os membros da Igreja, um estrato social em si próprio, eram também oriundos da nobreza.

O prestígio e posição das famílias nobres podia ser alterado basicamente de duas formas: através das alianças matrimoniais ou das guerras. Mesmo assim, para a nobreza que não era descendente direta de famílias reais havia um teto de vidro que não era ultrapassado: os membros das famílias reais só se casavam entre seus pares, para assegurar seu prestígio e fortalecer o seu poder. Portanto, continuava havendo barreiras sociais, determinadas pelo nascimento, mesmo entre os mais privilegiados membros das sociedades medievais.

Essa situação começou a alterar-se com o fim do feudalismo. A urbanização crescente da população a partir do renascimento, o progressivo fim da servidão, os descobrimentos marítimos, as colônias ultramarinas e o desenvolvimento do comércio trouxeram mudanças na organização das sociedades européias. Essas mudanças não impediram que o prestígio social ligado ao nascimento ainda fosse muito forte até o início do século XX. Basta lembrar que em 1900 só dois países europeus eram repúblicas: França e Suíça. Todos os demais eram monarquias. A nobreza, mesmo destituída de parte de seus privilégios, ainda gozava de enorme prestígio.

No entanto o desenvolvimento do capitalismo trouxe consigo primeiro o aparecimento da burguesia comercial. Em seguida, a partir da industrialização, a burguesia industrial e financeira também entraram em cena, e apareceu o proletariado. Estas novas classes sociais são definidas pelo nascimento unicamente pela negativa: não são nobres. Progressivamente a impermeabilidade existente na sociedade medieval foi se diluindo. Por um lado havia a possibilidade de mobilidade entre a burguesia e o proletariado; por outro, a acumulação de riquezas entre uma pequena parcela da burguesia tem como efeito abrir-lhe as portas da nobreza. Havia cada vez mais monarcas que outorgavam títulos de nobreza a súditos que prestavam relevantes serviços ao reino, notadamente financeiros. Ao mesmo tempo as famílias nobres se tornaram mais flexíveis nas suas alianças matrimoniais, quando viam a oportunidade de que seus filhos fizessem um casamento rico.

A partir do século XIX e mais acentuadamente no século XX o prestígio social é cada vez menos dependente do nascimento. As famílias burguesas, enriquecidas mas sem títulos, buscam elementos compensatórios que lhes confiram um reconhecido status social. A primeira forma é através da casa familiar. Quanto maior e mais ricamente decorada, maior sinal de fortuna. A casa familiar, de modo geral, passa a ser um símbolo de importância maior, o cartão de visitas, uma declaração ao mundo exterior que percorre todo o espectro de riqueza material. A pequeno burguesia, quando materialmente incapaz de ter uma grande casa, adota os valores da ordem, limpeza e disciplina como fatores que lhe asseguram relativa distinção.

O segundo aspecto a conferir respeitabilidade às famílias burguesas é a moral sexual e coesão familiar. É importante que, nas aparências ao menos, os membros familiares possam apresentar ao mundo uma ficha impecável de bom comportamento. Um escândalo, uma traição sexual, um filho fora do casamento, uma separação ou abandono do lar podem marcar negativamente não só seus atores principais, mas comprometer o bom nome de toda a família.

A terceira estratégia de reconhecimento social e busca de status está baseada na educação formal, na cultura geral e na consecução de uma carreira na administração do Estado. Poder mandar um filho à universidade é até hoje um mecanismo de esperança de ascensão social. Melhor se este filho fizer uma carreira na diplomacia, chegar a um ministério, obtiver uma cátedra universitária ou, muito mais prestigioso ainda, se tornar um escritor, intelectual renomado ou membro de uma Academia (de letras, artes, ciências, medicina etc).

Se ao longo do século XX a burguesia pôde encontrar o seu lugar ao sol, livre do jugo das normas ditadas pelo nascimento, este mesmo século produziu outras transformações sociais que têm um efeito determinante sobre o imaginário e o simbólico, tanto coletivo como individual. Entre elas destacam-se a aceleração do processo de urbanização, o incrível aumento da produtividade e do consumo, a expansão cada vez mais universal da classe média e o advento da sociedade de massas. Como consequência, o mundo entrou no século XXI mudado. As possibilidades que se apresentam a cada indivíduo são infinitas:

- Nunca houve tanta mobilidade social e geográfica na história da humanidade.

- Nunca se produziu e consumiu tanto como agora.

- Nunca houve tanta informação disponível.

- Nunca foi tão fácil se comunicar e as pessoas estiveram tão acessíveis.

- Nunca houve tanta população urbana (calcula-se que em meados de 2008 pela primeira vez a população urbana mundial superou a rural).

- Nunca houve tantos Estados Nacionais independentes e reconhecidos internacionalmente.

Nesse novo cenário internacional, a identidade individual se define por dois fatores: afiliação e consumo. As pessoas se identificam pela sua nacionalidade, pelo time pelo qual torcem, pelo partido ou corrente política que preferem, pela religião que praticam (ou não), o colégio ou universidade onde estudaram etc. Por outro lado, os símbolos de status que anteriormente eram determinados pelo nascimento, hoje são largamente definidos pelo que se consome: a marca do carro, da roupa, da bolsa, do relógio, do sapato, do celular, do computador, os vinhos que bebe, a classe em que viaja de avião, o número de estrelas do hotel onde se hospeda etc. As pessoas valem menos pelo que sabem e mais pela marca do seu diploma (os MBAs das escolas mais prestigiosas do mundo são cada dia mais caros e mais exclusivos). Quando a massificação e a ascensão econômica tornam determinados bens e serviços acessíveis a milhões de consumidores, alguém em alguma empresa descobre a maneira de voltar a diferenciá-los e torná-los exclusivos, para o consumo de poucos privilegiados.

"Eu consumo, logo existo" é uma marca do século XXI. No afã de tornar não só o consumo possível, mas principalmente, o consumo das marcas que conferem diferenciação e status, as pessoas trabalham cada vez mais, fazem sacrifícios e relegam para segundo plano valores, comunicação, interação social ou afeto. As relações interpessoais ficam mais coisificadas, passíveis de virar objeto de compra e venda: você se encontra mal? Tome um remédio. Seu filho é problemático? Pague um psicólogo. Seu vizinho lhe cria problemas? Contrate um advogado. Não está feliz com o seu corpo? Vá para um spa ou faça uma plástica. Duvida do seu bom gosto? Contrate um personal shopper. Não pôde estudar? Compre um diploma universitário, frequentando uma faculdade que exija pouco mais do que o pagamento da mensalidade. Quer escrever um livro mas não sabe como? Contrate um ghost writer. Tem que ir a um jantar importante e não tem um parceiro/parceira? Mande vir um acompanhante... Parece não haver limite para quem tem dinheiro para pagar pela solução dos seus problemas.

Com certeza, este não é o ponto final na longa jornada da humanidade, mesmo que seja difícil imaginar as consequencias do consumismo desenfreado ou o que poder vir depois. Tampouco pode-se negar que muito mais gente tem hoje a oportunidade de escolher sobre sua vida e sobre o que quer ser e fazer. A humanidade deu largos passos desde a sociedade medieval. Só é uma pena que ainda não haja disponível à venda no mercado a felicidade, em marca branca e do tipo simples e barato. Provavelmente nunca haverá. É o calcanhar de Aquiles desse mundo em que o consumo é tudo e que nós mesmos reconstruímos cada vez que compramos algo.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

ASAMG - Latinoamericanas

Nesta semana foi inaugurada a 37ª edição da feira do livro em Buenos Aires. O escritor peruano e atual prêmio Nobel de literatura Mario Vargas Llosa foi convidado para fazer sua abertura. Então, um idiota menor cujo nome nem vale a pena citar e que se diz "intelectual" (afe!) protestou contra a escolha e sugeriu que o autor peruano fosse desconvidado. A polêmica estava servida. Foi preciso até a intervenção da presidente argentina para acalmar os ânimos. Foi encontrada uma "solução" conciliadora, segundo a qual Vargas Llosa continuaria a ser o orador principal da abertura da feira, mas a cerimônia de abertura foi dividida em dois dias e ele só pôde pronunciar seu discurso no segundo dia. Para cúmulo da vergonha, hoje li no jornal "El País" que o escritor peruano tem que andar com proteção nas ruas, senão pode ser atacado fisicamente!

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Porque Mario Vargas Llosa é tão odiado por esses ditos intelectuais? Porque é um liberal. Porque faz a defesa da liberdade acima de tudo, a começar pela liberdade de expressão, mas também a de ir e vir, a de eleger seus representantes políticos, a defesa da democracia, da pluralidade, da crítica, de ser de outra opinião. Como Vargas Llosa critica tudo que lhe parece errado, como o regime cubano, os desvarios do Átila venezuelano, as políticas dos Kirchners na Argentina e muitas outras vacas sagradas da esquerda carolina, ele é detestado pelos pouca-leitura. Às vezes chega a ser vítima de demonstrações de violência. Quanto a mim, entre um senhor que defende a liberdade e os que tentam calá-lo, não duvido nem um minuto sequer sobre quem tem a minha simpatia. Que vexame para a Argentina!

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Por sinal, na revista "The Economist" desta semana há um artigo preocupante sobre outro tipo de censura naquele país. O secretário de comércio Guillermo Moreno tirou do armário uma lei de 1983, promulgada pela ditadura militar, para tentar evitar que estatísticas não oficiais de inflação possam ser divulgadas. Desde 2007 o governo argentino aprovou uma mudança absurda no cálculo oficial da inflação, o calcanhar de Aquiles do mau governo dos Kirchner, primeiro o falecido marido e agora a esposa. Só com essa manipulação oficial o índice parece estar sob controle. Haverá eleições em Outubro e o descalabro da inflação real, calculada em 25% contra os 10% oficiais, pode ser um entrave para a reeleição de Cristina Fernández. O que fazer? Censurar a força todo cálculo que insinue que o rei (ou rainha) está nu.

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Espero que a moda não contagie o Brasil, que em meio ao dilema juros/cambio/inflação poderia também se inclinar ou por controles de preço ou por maquiagem do cálculo da inflação. Acredito que nós já superamos esses perigos e nossa sociedade não aceitaria esse tipo de picaretagem, but you never know...

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Ainda na América latina, o Peru, o país que mais cresceu nos últimos dez anos e que se perfilava como um dos candidatos a ser rico em algumas décadas, conseguiu a proeza de mandar para o segundo turno das eleições presidenciais os dois piores candidatos. Nesses momentos dá uma enorme tristeza, pois os tres melhores candidatos dividiram o voto entre si e ficaram de fora do segundo turno por pouco. Como era mesmo? Quem é burro pede a Deus que o mate e ao Diabo que o carregue!

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Last but not least, em Cuba foi realizado o congresso do partido comunista, com direito a visita surpresa de Fidel e tudo. Se perguntarmos a qualquer latino americano medianamente informado quantas pessoas desapareceram ou foram assassinadas pelas ditaduras chilena ou argentina, a resposta estará na ponta da língua: os números são sempre 20.000 ou 30.000, para qualquer dos dois países. Não saberia dizer qual é o correto, mas o que me chama a atenção é que ninguém saberia dizer quantas pessoas desaparecem ou foram executadas pelo regime cubano. Você sabe? Não é que o número seja desconhecido, é que ele não é repetido à saciedade como os números do Chile e Argentina. A patrulha ideológica que defende o paraíso cubano é capaz de tudo, até de negar que tenha havido execuções... Pois é, o velhinho decrépito que é o ídolo de tanta gente e que, por velhinho, poderia inspirar simpatia, na verdade foi um ditador dos piores e grande assassino. Nem vale a pena discutir as reformas aprovadas no tal congresso. O regime cubano, como qualquer outra ditadura, um dia se desmoronará e não sobrará pedra sobre pedra. Nesse dia também saberemos muitas verdades que ainda podem ser escondidas. Repito o que já escrevi uma vez aqui: quando isso acontecer mais de uma reputação ficará abalada.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

ASAMG - Andando em Círculos

Em meados de 2006 fui passar uns dias no Brasil. Naquela ocasião almocei em São Paulo com um velho amigo. Estávamos em pleno escândalo do mensalão e no final do ano havia eleições. Como não podia deixar de ser, parte da nossa conversa foi sobre política.

Meu amigo me surpreendeu e me deixou estupefato quando disse que ia votar no Lula. "Como uma pessoa como você pode votar no Lula, Ricardo?" lhe perguntei. Ele nunca foi de esquerda e tinha criticado severamente todas as evidências de corrupção que estavam vindo à tona com o mensalão. Parecia incoerente. "É muito simples", respondeu. "Com esse governo os juros explodiram. Estou ganhando muito dinheiro sem ter que trabalhar e sem correr nenhum risco. Porque iria querer que mudasse?"

Lembrei-me dessa história ao ler as notícias dos últimos dias. Está cada vez mais intenso o debate sobre a valorização do real e seus efeitos perversos sobre a competitividade dos produtos brasileiros no exterior, principalmente ao terem que competir com a China, cuja moeda está infra-valorada. Parte da culpa reside nos juros praticados pelo Banco Central, que vira e mexe lemos que são os mais altos do mundo. No entanto, o Banco Central aumentou e possivelmente continuará aumentando os juros por causa das pressões inflacionárias, que continuam em alta. A própria valorização do real ajuda a manter a inflação controlada, na medida que os produtos importados são mais baratos em reais.

Não há absolutamente nada de novo nesse debate. Em Outubro de 2008, comentando as perspectivas da economia mundial e seu impacto sobre o Brasil escrevi que " Cada vez é maior o número dos (economistas) que acreditam que a desaceleração da economia pode ser brusca. 3% de crescimento em 2009 já é considerado um cenário super otimista. Como em 2010 há eleição e é da natureza do partido que está no poder tentar mantê-lo a qualquer custo, é de se esperar que a pressão para manter o crescimento econômico seja máxima. Até aí, tudo bem. O problema é que o caminho mais tentador será o de aumentar os gastos e relaxar as políticas fiscal e monetária. Essa receita é a mais fácil, qualquer tonto sabe propô-la. Como dizem na Espanha, é pão para hoje e fome para amanhã, pois no longo prazo passa fatura. Agora seria a hora de fazer a sério as reformas estruturais de que o país tanto precisa e que foram as grandes ausentes deste Governo. A mais óbvia seria a reforma fiscal. Será que nossos políticos e formadores de opinião estarão à altura dos acontecimentos?"

No mês seguinte voltei a escrever sobre o mesmo assunto: " Com o panorama internacional, é impossível fazer tudo ao mesmo tempo: manter o crescimento econômico acima de 3%, conter a desvalorização do real, manter os investimentos previstos, manter o superávit primário, manter a inflação dentro da meta e não subir os juros. Dependendo de que grupos de pressão e que forças políticas prevaleçam, uma ou várias das metas acima irão para o espaço."

Não deu outra. Em 2009 houve recessão. A economia encolheu 0,6% e a resposta do governo Lula foi gastar mais e relaxar principalmente a política fiscal, mas também a monetária. Qual é a surpresa de que haja pressão inflacionária agora? É o preço que todos brasileiros vão pagar pelo esforço do governo anterior de eleger sua candidata.

É lamentável que a inflação seja combatida só com o aumento dos juros e a valorização da moeda. Essa fórmula reforça a mentalidade rentista de muitos brasileiros, como o amigo com quem almocei em 2006. É nefasta a idéia que se possa viver confortavelmente dos juros das aplicações financeiras, principalmente quando os mesmos são muito mais altos que em qualquer outro lugar do mundo. Só há uma maneira de criar riquezas e é através do trabalho. Os juros altos drenam riquezas para os detentores de ativos financeiros e desestimulam investimentos produtivos. Isso é receita de ruína. Pode ser adotada em situações conjunturais e por tempo limitado, mas no Brasil essa fórmula é a regra.

Então, o que fazer? Certamente a resposta a estes desafios não é nem um controle excessivo do cambio, muito menos a redução artificial dos juros. Ambas medidas teriam efeitos colaterais ainda mais indesejáveis, o primeiro deles o descontrole da inflação. A pergunta que falta fazer e responder é: porque os juros têm que ser tão altos no Brasil para conter a inflação? Pessoalmente não tenho dúvidas quanto à resposta: porque o déficit público atual e futuro (principalmente o déficit da previdência) não deixam margem de manobra. Se algum governo, algum dia, se comprometesse a atingir superávit corrente (ou seja, depois de pagar os juros da dívida pública) e ao mesmo tempo fizesse uma reforma da previdência que desarmasse a bomba relógio que seu buraco financeiro representa, poderíamos finalmente ver os juros descerem para patamares de países mais estáveis. Por outro lado, enquanto isso não acontecer não sairemos do círculo vicioso pressão inflacionária/juros altos/cambio valorizado. Tá na cara. Só os pais do Cruzado e seus discípulos não vêm. E o país continua a dar voltas em torno do prato quente.