Durante a Idade Média o mundo conhecido, ou seja, aquele onde havia sociedades sedentárias com unidades político-administrativas organizadas e onde havia escrita (e portanto história) se compunha do bloco euro-asiático, norte da África e Oriente Médio. O Ocidente se resumia à Europa e nela as invasões bárbaras e a desintegração do Império Romano levaram ao esvaziamento das cidades, ruralização da população e da economia e ao feudalismo, que durou dez séculos.
No sistema feudal a posição de cada indivíduo na sociedade é determinada pelo nascimento e não há mobilidade possível. Na base da pirâmide estavam os servos, ligados à terra e dependentes do seu senhor. Os senhores, por sua vez, compunham a nobreza e entre eles havia relações de suserania e vassalagem, ou seja, havia uma hierarquização do prestígio relativo de cada família nobre e seus membros. No topo da pirâmide se encontravam as famílias reais. Apesar de que as guerras pudessem levar a alterações na hierarquia, com o aparecimento ou desaparecimento de novos reinos, principados, ducados ou condados, como classe social a nobreza era na prática impermeável, sendo quase sempre inalcançável para pessoas de fora. Os membros da Igreja, um estrato social em si próprio, eram também oriundos da nobreza.
O prestígio e posição das famílias nobres podia ser alterado basicamente de duas formas: através das alianças matrimoniais ou das guerras. Mesmo assim, para a nobreza que não era descendente direta de famílias reais havia um teto de vidro que não era ultrapassado: os membros das famílias reais só se casavam entre seus pares, para assegurar seu prestígio e fortalecer o seu poder. Portanto, continuava havendo barreiras sociais, determinadas pelo nascimento, mesmo entre os mais privilegiados membros das sociedades medievais.
Essa situação começou a alterar-se com o fim do feudalismo. A urbanização crescente da população a partir do renascimento, o progressivo fim da servidão, os descobrimentos marítimos, as colônias ultramarinas e o desenvolvimento do comércio trouxeram mudanças na organização das sociedades européias. Essas mudanças não impediram que o prestígio social ligado ao nascimento ainda fosse muito forte até o início do século XX. Basta lembrar que em 1900 só dois países europeus eram repúblicas: França e Suíça. Todos os demais eram monarquias. A nobreza, mesmo destituída de parte de seus privilégios, ainda gozava de enorme prestígio.
No entanto o desenvolvimento do capitalismo trouxe consigo primeiro o aparecimento da burguesia comercial. Em seguida, a partir da industrialização, a burguesia industrial e financeira também entraram em cena, e apareceu o proletariado. Estas novas classes sociais são definidas pelo nascimento unicamente pela negativa: não são nobres. Progressivamente a impermeabilidade existente na sociedade medieval foi se diluindo. Por um lado havia a possibilidade de mobilidade entre a burguesia e o proletariado; por outro, a acumulação de riquezas entre uma pequena parcela da burguesia tem como efeito abrir-lhe as portas da nobreza. Havia cada vez mais monarcas que outorgavam títulos de nobreza a súditos que prestavam relevantes serviços ao reino, notadamente financeiros. Ao mesmo tempo as famílias nobres se tornaram mais flexíveis nas suas alianças matrimoniais, quando viam a oportunidade de que seus filhos fizessem um casamento rico.
A partir do século XIX e mais acentuadamente no século XX o prestígio social é cada vez menos dependente do nascimento. As famílias burguesas, enriquecidas mas sem títulos, buscam elementos compensatórios que lhes confiram um reconhecido status social. A primeira forma é através da casa familiar. Quanto maior e mais ricamente decorada, maior sinal de fortuna. A casa familiar, de modo geral, passa a ser um símbolo de importância maior, o cartão de visitas, uma declaração ao mundo exterior que percorre todo o espectro de riqueza material. A pequeno burguesia, quando materialmente incapaz de ter uma grande casa, adota os valores da ordem, limpeza e disciplina como fatores que lhe asseguram relativa distinção.
O segundo aspecto a conferir respeitabilidade às famílias burguesas é a moral sexual e coesão familiar. É importante que, nas aparências ao menos, os membros familiares possam apresentar ao mundo uma ficha impecável de bom comportamento. Um escândalo, uma traição sexual, um filho fora do casamento, uma separação ou abandono do lar podem marcar negativamente não só seus atores principais, mas comprometer o bom nome de toda a família.
A terceira estratégia de reconhecimento social e busca de status está baseada na educação formal, na cultura geral e na consecução de uma carreira na administração do Estado. Poder mandar um filho à universidade é até hoje um mecanismo de esperança de ascensão social. Melhor se este filho fizer uma carreira na diplomacia, chegar a um ministério, obtiver uma cátedra universitária ou, muito mais prestigioso ainda, se tornar um escritor, intelectual renomado ou membro de uma Academia (de letras, artes, ciências, medicina etc).
Se ao longo do século XX a burguesia pôde encontrar o seu lugar ao sol, livre do jugo das normas ditadas pelo nascimento, este mesmo século produziu outras transformações sociais que têm um efeito determinante sobre o imaginário e o simbólico, tanto coletivo como individual. Entre elas destacam-se a aceleração do processo de urbanização, o incrível aumento da produtividade e do consumo, a expansão cada vez mais universal da classe média e o advento da sociedade de massas. Como consequência, o mundo entrou no século XXI mudado. As possibilidades que se apresentam a cada indivíduo são infinitas:
- Nunca houve tanta mobilidade social e geográfica na história da humanidade.
- Nunca se produziu e consumiu tanto como agora.
- Nunca houve tanta informação disponível.
- Nunca foi tão fácil se comunicar e as pessoas estiveram tão acessíveis.
- Nunca houve tanta população urbana (calcula-se que em meados de 2008 pela primeira vez a população urbana mundial superou a rural).
- Nunca houve tantos Estados Nacionais independentes e reconhecidos internacionalmente.
Nesse novo cenário internacional, a identidade individual se define por dois fatores: afiliação e consumo. As pessoas se identificam pela sua nacionalidade, pelo time pelo qual torcem, pelo partido ou corrente política que preferem, pela religião que praticam (ou não), o colégio ou universidade onde estudaram etc. Por outro lado, os símbolos de status que anteriormente eram determinados pelo nascimento, hoje são largamente definidos pelo que se consome: a marca do carro, da roupa, da bolsa, do relógio, do sapato, do celular, do computador, os vinhos que bebe, a classe em que viaja de avião, o número de estrelas do hotel onde se hospeda etc. As pessoas valem menos pelo que sabem e mais pela marca do seu diploma (os MBAs das escolas mais prestigiosas do mundo são cada dia mais caros e mais exclusivos). Quando a massificação e a ascensão econômica tornam determinados bens e serviços acessíveis a milhões de consumidores, alguém em alguma empresa descobre a maneira de voltar a diferenciá-los e torná-los exclusivos, para o consumo de poucos privilegiados.
"Eu consumo, logo existo" é uma marca do século XXI. No afã de tornar não só o consumo possível, mas principalmente, o consumo das marcas que conferem diferenciação e status, as pessoas trabalham cada vez mais, fazem sacrifícios e relegam para segundo plano valores, comunicação, interação social ou afeto. As relações interpessoais ficam mais coisificadas, passíveis de virar objeto de compra e venda: você se encontra mal? Tome um remédio. Seu filho é problemático? Pague um psicólogo. Seu vizinho lhe cria problemas? Contrate um advogado. Não está feliz com o seu corpo? Vá para um spa ou faça uma plástica. Duvida do seu bom gosto? Contrate um personal shopper. Não pôde estudar? Compre um diploma universitário, frequentando uma faculdade que exija pouco mais do que o pagamento da mensalidade. Quer escrever um livro mas não sabe como? Contrate um ghost writer. Tem que ir a um jantar importante e não tem um parceiro/parceira? Mande vir um acompanhante... Parece não haver limite para quem tem dinheiro para pagar pela solução dos seus problemas.
Com certeza, este não é o ponto final na longa jornada da humanidade, mesmo que seja difícil imaginar as consequencias do consumismo desenfreado ou o que poder vir depois. Tampouco pode-se negar que muito mais gente tem hoje a oportunidade de escolher sobre sua vida e sobre o que quer ser e fazer. A humanidade deu largos passos desde a sociedade medieval. Só é uma pena que ainda não haja disponível à venda no mercado a felicidade, em marca branca e do tipo simples e barato. Provavelmente nunca haverá. É o calcanhar de Aquiles desse mundo em que o consumo é tudo e que nós mesmos reconstruímos cada vez que compramos algo.
quinta-feira, 28 de abril de 2011
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